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Forum Cinema em Cena

Alexei

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Everything posted by Alexei

  1. Estava aqui lendo os últimos comentários. Bom que a maioria de vocês se divertiu, pois eu não tive esse privilégio. Achei o filme muito cansativo, com personagens revelando planos dentro de planos a cada 15 ou 20 minutos apenas para guiá-los àquele encontro final, que pretendia ser apoteótico mas não conseguiu, em minha opinião. Eu gostei muito do primeiro filme e achei que o segundo já padecia do excesso de tramas e reviravoltas em prejuízo de diálogos espirtuosos e daquele sabor meio nostálgico dos filmes de aventura de antigamente; esse último episódio tem esses mesmos problemas, mas com muito mais intensidade. Em alguns momentos beira o ridículo, como o encontro do tal Conclave - para mim, uma mistura estapafúrdia de Conselho de Segurança da ONU (tem Reino Unido, China, França...) com Programa do Ratinho. O filme tem muitos outros aspectos negativos, como as soluções dadas pelos roteiristas à Tia Dalma, que perdeu todo o seu magnetismo sensual. Um total desperdício de material e de atriz também (quem viu Naomi Harris em Miami Vice sabe do que ela é capaz). nem vou me dar ao trabalho de citar os aspectos que eu não gostei porque tudo seria perdoável se o filme fosse divertido - e como o Nacka falou tão bem, ele não é.
  2. Os Bons Companheiros (Goodfellas, 1990) by Veras Um filme de Martin Scorsese Filme: Goodfellas (EUA, 1990). Direção: Martin Scorsese. Elenco: Ray Liotta (Henry Hill), Robert De Niro (Jimmy Conway), Joe Pesci (Tommy DeVito), Lorraine Bracco (Karen Hill), Paul Sorvino (Paul Cícero), Samuel L. Jackson (Stacks Edwards). Sinopse: Baseado no bestseller de Nicholas Pileggi, Scorsese produz um clássico do gangster. De fato, é uma história real narrada em primeira pessoa por Henry Hill e, em menor freqüência, por Karen Hill, mostrando as idéias dela sobre o seu marido e os acontecimentos que se passam. Então é isso. O filme é a história da vida dele.<?:NAMESPACE PREFIX = O /> "As far back as I can remember, I've always wanted to be a gangster." Henry Hill – metade italiano, metade irlandês – nos é apresentado como o primogênito dos 3 filhos de um casal pobre, mas trabalhador, que levavam uma vida difícil, embora honesta, numa casinha apertadinha e cheia de contas a pagar. Entretanto, essa vida de mediocridade não interessava ao jovem Henry, que da sua janela admirava os grandes criminosos que se reuniam do outro lado da rua. Homens com poder, influência e dinheiro que não davam satisfação a ninguém. Por fim, o jovem acaba por se entregar a esse mundo, inicialmente fazendo pequenos trabalhos, e posteriormente se consolidando dentre os grandes gangsters. E então, entre os amigos criminosos que fez, todos protegiam uns ao outros em quaisquer circunstâncias, eram Goodfellas. O que eu acho: A arte do cinema (falo aqui da bem-sucedida) contém dois pólos básicos: Ora a obra se destaca pela grandiosidade (King Kong, O sr. dos Anéis, Jurassic Park), ora pelo minimalismo (Melhor é Impossível, Pequena Miss Sunshine). Essa grandiosidade é definida por grandes planos de ação, alta tecnologia, efeitos especiais. Enquanto o minimalismo se caracteriza pela idéias simples e inteligentes, orçamento modesto. Em Goodfellas, Scorsese não se encontra em nenhum desses pólos. Isso porque ele atinge a grandiosidade através da exploração do minimalismo. Ele consegue reunir todas as idéias pontuais, inteligentes e consistentes, trabalhar a composição delas e fazê-las encaixadas em seus devidos lugares na rica, lógica e pouco prolixa rede de informações do seu roteiro. E é assim, pelo alcance do meio termo perfeito, que Scorsese transforma a natureza simples de alguns elementos, fazendo cada um deles uma peça única e essencial de sua arte, transformando tudo isso num monumento cinematográfico imponente; um clássico consagrado. E faz isso assim, de forma impecável e bem ali, diante dos nossos olhos. E é simplesmente maravilhoso ver isso acontecer. Esse trabalho detalhista do diretor começa desde a escolha do tema, passando pela composição do roteiro, escalação de elenco e, claro, direção (o projeto executivo da arte cinematográfica). O tema é interessantíssimo. Foi escolhido no início dos anos 90, mas poderia ter sido escolhido 30 anos antes ou 50 anos depois. Isso porque ele já é auto-sustentável por excelência, por possuir um caráter, embora não exatamente inovador, mas extremamente particular: O fato de se tratar de uma história real, contada pelo próprio protagonista, de um estilo de vida completamente fora do usual, o que torna possível aos espectadores acessar essa mente diferenciada e entender os porquês das suas escolhas, ações e reações. Na formulação do roteiro e execução das idéias, Scorsese é essencialmente transparente, deixando claro suas intenções desde o início. Os créditos surgem na tela casados com a sonoplastia de um veículo em alta velocidade. E é justamente isso que vemos em seguida, a sonoplastia rebatida em imagem. Na seqüência, vemos os três personagens principais assassinando um homem já ferido dentro do porta-malas do carro. Nesse ponto, o espectador já sabe o que vai encontrar no filme, sem surpresas e sem frustrações. (Sem frustrações de nenhum tipo, já que todas as expectativas são devidamente atingidas). E, para ser ainda mais claro, a câmera aplica um “close” no rosto de Ray Liotta, e então podemos ouvir sua célebre frase: “As far back as I can remember, I've always wanted to be a gangster." E então a idéia do filme pelo espectador se completa aí, mostrando quem é o protagonista que irá contar sua história. O roteiro inteiro segue a mesma linha. A narrativa feita por Henry Hill - bem como as intervenções de Karen Hill – e o foco da cena sempre determinado pela presença de pelo menos um dois narradores reforçam ainda mais a idéia de uma “história real” que está sendo contada. Uma cena destaque nesse aspecto é quando, na fase jovem do protagonista, este fala um pouco de cada personagem apresentando-os ao espectador de uma maneira bem intimista, coerente e necessária. “Paulie podia ser lento, mas era só porque não tinha que se apressar por ninguém” Seqüências outras muito boas no mesmo estilo ficam por conta da narração de Karen Hill: a cena da 1ª reunião entre as famílias dos gangsters presenciada pela personagem, as primeiras impressões dela sobre seu marido e o acesso de raiva quanto à traição do dele. (Cena em que ela acorda Henry com uma arma apontada para ele. Ótima cena) “But still I couldn’t hurt him How could I hurt him?” Falando ainda do roteiro, é maravilhoso como ele se sustenta do início ao fim, mostrando-se inteiramente homogêneo, sem aqueles altos e baixos que cansam o espectador. <?:NAMESPACE PREFIX = O /> Quanto aos atores escalados, é quase como se tivessem sido talhados especialmente para tal ocasião de tão bem definidos, localizados e trabalhados; todos eles muitíssimo confortáveis nos seus papéis. O destaque maior vai para Joe Pesci e a melhor atuação de sua carreira, seguido de perto por Robert De Niro (que cedo encontrou o caminho da boa atuação para perder-se jamais), Ray Liotta – em um personagem carismático e expressivo – e Lorraine Bracco, que passa da condição de coadjuvante para atriz destaque numa gradação completamente adequada ao desenvolvimento da história. O amadurecimento e envelhecimento dos personagens também é digno de nota. Principalmente do casal principal e de Robert De Niro. Acompanhamos Hill desde um jovem rapaz curioso e ativo, passando por um homem cheio de classe, elegância e bem-sucedido na “profissão”, até um neurótico gangster, profundamente perturbado pela droga e pelo declínio de sua posição. Destaco aqui a seqüência já próxima do fim da película (uma das melhores) <?:NAMESPACE PREFIX = ST1 />em que Hill conta o seu dia agitado de forma incrivelmente perturbada. Em Karen, as suas mudanças são essenciais para cada fase da história. Na sua primeira fase, ela é uma moça encantada pelo charme e pela influência de seu marido, que não faz perguntas sobre suas atividades, posicionando-se extremamente à parte da vida "profissional" dele. Numa segunda fase, ela está completamente perturbada pela vida incerta que leva e pelas traições de seu marido, chateando-o, intervindo e mostrando-se contrária a tudo. Até que, numa terceira fase, ela aceita por fim a condição do relacionamento, torna-se presente e até auxilia nos seus serviços – respeitando certos limites claro. A evolução do personagem de Pesci acontece de forma diferente. Ele passa de um rapaz um tanto quanto inexpressivo, quando jovem, para um adulto de cabeça quente e cheio de brincadeiras de mau gosto, até deixa-se levar completamente pelo poder que alcança, no cúmulo da inconseqüência (como na cena em que mata o garoto garçom totalmente sem motivos). Embora o personagem seja insuportavelmente chato, a atuação de Pesci é impecável, fazendo merecer cada elogio e prêmio que recebeu por ela. “Estava brincando e você matou o garoto?” “Como vou saber quando você está brincando?”<?:NAMESPACE PREFIX = O /> O personagem de De Niro evolui de forma sutil. Paulatinamente vai se afastando do protagonista (e, por conseqüência, do espectador), ficando completamente distante dele, até que este não pode mais confiar no seu antigo grande amigo, suspeitando de todas as suas ações. “Murderers come with smiles.” <?:NAMESPACE PREFIX = O /> Voltando a falar mais sobre a arte detalhista de Scorsese e seu elenco, gostaria de citar algumas cenas fantásticas, tendo tanto a direção quanto as atuações como destaque. A cena <?:NAMESPACE PREFIX = ST1 />em que Karen Hill vai tirar satisfações com Henry depois de este ter faltado a um encontro com ela (afinal, até então, nela ele não tinha nenhum interesse real) é um dos marcos da história. Nesse momento, observem o rosto dele, o sorriso que ele abre e o jeito como ele fica dando desculpas por ter faltado. Ali ele mostra claramente que adorou a reação dela e passou, a partir desse ponto, a interessar-se pela moça realmente. Cito também a cena antológica (e esta é de excelência fenomenal) em que Ray Lyotta leva sua então namorada a um restaurante e resolve mostrar sua influência no estabelecimento, entrando pela porta dos fundos. “Prefiro assim, não gosto de enfrentar filas”. São exatos 3 minutos e 02 segundos de uma precisão incrível. Scorsese conduz a cena passando por porteiros, casal namorando, cozinheiros, garçons, mesas e todos os tipos de obstáculos que se encontra em uma cozinha de restaurante cheia, mostrando como Lyotta é popular entre todos eles e como ele deixa uma nota de $20 dentro do bolso de cada funcionário que o ajuda ou o cumprimenta. A cena se prolonga sem um único corte até Lyotta chegar dentro do restaurante e receber uma mesa privilegiada bem na frente do palco de apresentações. Tudo isso em uma sincronia espetacular. “Deu 20 dólares a cada um deles.”<?:NAMESPACE PREFIX = O /> “...” Enfim, não há nada em Goodfellas para o qual Scorsese não tenha reservado atenção e dedicação incríveis, produzindo assim um clássico, um fenômeno imperdível para qualquer admirador de cinema. Preste atenção: Na trilha sonora brilhante, variando de blues até o punk de Sid Vicious, passando por Rolling Stones, e que dá todo o clima durante o filme. Além de tudo o que foi dito: na fotografia e no figurino (sensacionais). Porque não perder: Porque é OP. Simples assim <?:NAMESPACE PREFIX = O /> O que já se disse antes: (adorocinema.com) “Um filme que entrou de rompante nas salas de cinema em 1990, com a frontalidade, qualidade e know how que Scorsese ganhou ao longo dos anos.” “Quando Martin Scorsese, um dos mais respeitados diretores do mundo se reuniu com Robert De Niro (Vencedor de 2 Oscar) <?:NAMESPACE PREFIX = ST1 />em Os Bons Companheiros, o resultado foi a produção de um filme inesquecível que recebeu 6 indicações ao Oscar incluindo Melhor Filme e Melhor Diretor de 1990.” Curiosidades: O nome original de Goodfellas seria inicialmente "Wiseguy", mesmo nome do livro em que o roteiro foi baseado. A troca foi realizada apenas para não causar confusão com O Homem da Máfia, de 1987, cujo título original é exatamente "Wiseguy". Catherine e Charles Scorsese, mãe e pai do diretor Martin Scorsese, fizeram pequenas pontas no filme. Este é o 3º de 6 filmes em que Robert De Niro e Joe Pesci atuaram juntos. Os demais foram Touro Indomável (1980), Era Uma Vez na América (1984), Desafio no Bronx (1993), Cassino (1995) e O Bom Pastor (2006). Principais prêmios e indicações:<?:NAMESPACE PREFIX = O /> Oscar 1991 (EUA) Vencedor na categoria de Melhor Ator Coadjuvante (Joe Pesci). Recebeu mais cinco indicações ao Oscar, nas categorias de Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Atriz Coadjuvante (Lorraine Bracco) e Melhor Edição. Globo de Ouro 1991 (EUA) Indicado nas categorias de Melhor Diretor - Cinema", Melhor Filme - Drama, "Melhor Ator Coadjuvante - Cinema (Joe Pesci), Melhor Atriz Coadjuvante - Cinema (Lorraine Bracco) e Melhor Roteiro - Cinema. BAFTA 1991 (Reino Unido) Vencedor nas categorias de Melhor Direção, Melhor Figurino, Melhor Edição, Melhor Filme e Melhor Roteiro Adaptado. Indicado na categoria de Melhor Ator (Robert De Niro) e Melhor Fotografia. Festival de Veneza 1990 (Itália) Venceu na categoria de Melhor Diretor (Leão de Prata). Prêmio César (França) Indicado na categoria Melhor Filme Estrangeiro. Prêmio Bodil 1991 (Dinamarca) Venceu na categoria de Melhor Filme Não-Europeu. Prêmio Eddie 1991 (American Cinema Editors, EUA) Indicado na categoria de Filme melhor Editado. Prêmio NYFCC 1990 (<?:NAMESPACE PREFIX = ST1 />New York Film Critics Circle Awards, EUA) Venceu nas categorias de Melhor Diretor, Melhor Filme e Melhor Ator (Robert De Niro). Informações sobre o filme: Título: Os Bons Companheiros Título original: Goodfellas País(es) de origem: Estados Unidos Ano de produção: 1990 Áudio Original: Inglês Duração: 146 minutos Faixa etária: Livre Informações sobre o DVD simples: Legenda: Espanhol, Inglês, Português Tipo de áudio: 5.1 surround Formato de tela: widescreen Extras: Menu interativo, Seleção de Cenas Fornecedor: Warner Informações sobre o DVD duplo: Disco 1: Áudio Original em Inglês (Dolby Digital 5.1); Japonês (Dolby Digital 2.0); e Português (Mono). Disco 2: Áudio em Inglês. Fornecedor: Warner Extras: Disco 1: Comentário da Equipe e do Elenco (original em inglês) Comentário do Mocinho (original em inglês) Disco 2: A Realização A Vida de um Gângster O Legado de Os Bons Companheiros Papel é Mais Barato que Filme Trailer de Cinema (original em inglês) Finalmente consegui publicar a resenha da Veras. Tive problemas porque algumas tabelas inseridas no texto geraram uma grande desconfiguração - com barra de rolagem horizontal, o que dificulta a leitura - que teimava em permanecer, por isso digitei essa parte final. Belo trabalho esse da colega, estreante no tópico e também moderadora. A Veras organizou suas idéias de uma forma tão pontual que os pequenos e inúmeros parágrafos poderia ser embaralhados e reorganizados sem prejuízo do entendimento do texto. Uma ótima forma, muito pessoal e agradável, de encerrar a segunda temporada do Cineclube em Cena. Ao final dessa semana, após os comentários dos colegas sobre o filme e a crítica, farei as considerações finais sobre o tópico, os erros e os acertos desses últimos quatro meses e os rumos do Cineclube para o futuro.Alexei2007-05-28 18:46:29
  3. O Novo Mundo by J. de Silentio Como autêntica Arte, o Cinema tanto entretém o espectador quanto amplia a visão de mundo deste, por vezes sem que a audiência se dê conta do fato; pois, além do mero, conquanto importante, prazer estético proporcionado pelas imagens e pelo som, sobrevém, disfarçada de divertimento, a educação artística do espectador, uma maior percepção das coisas e de si mesmo, na medida em que o artista, o que de fato e sem dúvida são os diretores de Cinema autorais, lança um facho de luz e ilumina aquilo que para nós outros eram apenas trevas, tanto mais escuras por estarem dentro de nós, confinadas desde sempre no corpo, essa caverna sem fogueira. É o que, por exemplo, diz Proust, num célebre passo, que cito aqui pela lição que encerra: "(...) um teclado incomensurável, ainda quase completamente desconhecido, onde apenas aqui e ali, separadas por espessas trevas inexploradas, algumas dos milhões de teclas de ternura, de paixão, de coragem, de serenidade, que o compõem, cada qual tão diferente da outra como um universo de outro universo, foram descobertas por alguns grandes artistas que, despertando em nós o correspondente do tema que encontraram, nos prestam o serviço de mostrar-nos que riqueza, que variedade oculta, sem o sabermos, esconde essa grande noite indevassada e desalentadora da nossa alma, que nós consideramos como vácuo e nada". O Novo Mundo (The New World), do diretor Terrence Malick, se inicia com uma suave invocação à Mãe, ou seja, a Terra, a Natureza dos nativos americanos. Como podemos constatar, não se trata da convencional invocação épica às Musas, que celebrassem as armas e os barões assinalados pela Fortuna, mas apenas um singelo apelo ao espírito sereno da Natureza. Isso é suficiente para explicar o filme: fugindo da obviedade popular dos filmes de ação, O Novo Mundo é um filme lírico, contemplativo, uma poesia visual, em suma, uma experiência sensorial à flor da pele. O vento sibilando nas árvores, o marulho do oceano, a voz meiga e sincera da bela índia Pocahontas, tudo isso ouvimos, vemos e, sobretudo, sentimos, tamanho o poder sugestivo das imagens. Após os créditos iniciais, ao som da imponente música dos Nibelungos de Richard Wagner, avistamos, quase ao mesmo tempo que os índios, a chegada dos navios ingleses no litoral da Virginia, no começo do século XVII. Trata-se de uma cena cuja plasticidade, aliada, ademais, ao som do mar, do vento e da música wagneriana, atinge o sublime; talvez que, ao abrir a boca, sentíssemos o gosto salgado da água, respirássemos a brisa com vestígio de gaivotas do litoral americano, nossas mãos estivessem calejadas com os nós do cabrestante. Num dos navios vem John Smith (Colin Farrell), soldado que será enforcado tão logo os ingleses achem um lugar onde constituir acampamento. Muita gente tem resistência ao ator irlandês, mas neste filme sua atuação é irretocável, bem como a da promissora Q'Orianka Kilcher, que interpreta, com ingenuidade e graça únicas, a nativa Pocahontas. O capitão Smith é perdoado, tendo obtido a clemência do capitão Newport (Christopher Plummer), e, junto com os demais, tentará fazer do Novo Mundo, a América, seu novo lar, um novo reino de Cristo prometido aos pioneiros ingleses. Lá, claro, Smith, um novo Adão, encontrará sua Eva. E o Paraíso será perdido. Desde sempre esteve a Arte vinculada ao conhecimento. As pessoas que a desfrutavam não visavam senão, a par da fruição estética momentânea, o autoconhecimento; uma elevação de si mesmos, o enlevo da alma. Basta pensar no Teatro grego, na Escolástica Medieval, na Estética de Schopenhauer etc. Hoje em dia, contudo, em pleno ápice dos meios de comunicação de massa, quando o Cinema cada vez mais assume sua mera condição de Indústria, às pessoas normais os filmes não passam de um lazer passageiro, um escape regado a refrigerante e pipoca, constituindo uma fuga do cotidiano anódino ditado pela modernidade. Daí que qualquer verdadeira obra de arte que não corresponda ao conceito vulgar de entretenimento de massa fique restrita ao circuito alternativo, aos festivais, aos cinéfilos. Tais filmes não são vistos com bons olhos pelo grande público; aliás, nem poderiam, pois, ainda que abertos, seus olhos, e um conhecido adágio chama o olho de janela da alma, são, por assim dizer, como os olhos de uma estátua de mármore. O Novo Mundo, como acima está escrito, é uma poesia em imagens, o que nos lembra ou antes confirma a definição do poeta latino Horácio: ut pictura poesis, isto é, a poesia é como uma pintura. No presente caso, uma pintura de fundo histórico, como um quadro de Rembrandt. Contribuem imenso para a perfeita reconstituição de época a direção de arte impecável, o meticuloso figurino e a espantosa maquiagem dos nativos. Difícil crer que os índios sejam atores e não reais silvícolas do século XVII. No que diz respeito à trilha sonora, destacamos a peça já referida do Richard Wagner, utilizada nas vezes, três, em que há um ganho de consciência de alguma personagem (de que falaremos mais à frente), e o Concerto para Piano 23 de Mozart, usado nas cenas românticas. A trilha do James Horner, por sua vez, é apenas funcional. Uma das músicas lembra demais um fragmento do score de Apocalypto, trilha posterior do mesmo compositor. Grande parte do mérito do valor pictórico e sensorial deste filme se deve ao talentoso fotógrafo mexicano Emmanuel Lubezki, que, com luz natural, se esmera ao captar a natureza do Novo Mundo, bem como a Inglaterra, no quarto final da obra, em todas as suas variações, seja o inverno, a primavera, a chuva ou o nascer do sol. O filme é bem generoso nesse aspecto, uma vez que se detém, com vagar, calma e aturdido deslumbramento, diante de cada espetáculo que nos oferece diuturnamente a Natureza, e que, distraídos, no dia-a-dia, ficamos sem notar. Cumpre notar a preponderância que a água tem no filme, sendo o mar, os rios, a chuva, o poço, as poças enlameadas, a neve, em suma, um elemento primordial à Natureza e igualmente necessário à Civilização. Uma das mais belas cenas do filme é apenas e justamente uma tomada de umas poucas árvores e, acima delas e entre suas frondes e galhos, uma nesga de céu; de repente a imagem estremece e surge um círculo concêntrico; é quando então percebemos que estivemos a olhar para o reflexo das árvores e do céu refletidos numa poça d'água, como se víssemos o mundo sempre através de um espelho, mais que uma miragem, menos que a verdade. Não têm mais as pessoas, hoje em dia, o hábito da contemplação. Querem nos filmes ação desenfreada, explosões e tiros, sexo e nudez, sequer um momento em que fiquem a sós consigo e com seus pensamentos; querem o exótico, paisagens de cartão postal, romance água-com-açúcar, tudo aquilo, em resumo, que Hollywood, em sua maioria, por décadas nos vem impingindo. O problema está em que na vida sucedem tão poucas explosões, tão poucas reviravoltas, o que torna os filmes falsos, na medida em que pouco correspondem à nossa vivência real e efetiva, em que o mais do tempo é gasto, monotonamente, em cumprir uma rotina cada vez mais desgastante, uma existência cada vez mais sem sentido. Isso implica em tornar a dizer que os filmes são encarados por muita gente como apenas uma fuga, de si mesmos e da realidade. Daí decorre que o público não tem mais emoções autênticas, senão as que, mesmas de sempre, o lugar-comum tornou aceitáveis, porquanto facilmente reconhecíveis, às pessoas de mente empedernida, tão de granito como os nossos corações, pela Medusa da rotina. Vivendo nas cidades, emparedados nessas selvas de pedra, conforme se costuma dizer, em meio ao labirinto das calçadas e às catadupas de concreto dos edifícios, perdemos, em decorrência da artificialidade veloz de nossas relações, muito de nossa humanidade, levando uma existência anistórica, antinatural. O Novo Mundo é uma celebração da Natureza edênica, virgem, imensurável. Ao assistir ao filme, dir-se-ia pudéssemos sentir a fragrância das florestas, adentrando, espantados, as matas, com os pés sujos de barro e chapinhando nas poças à beira dos rios, enquanto, perto, mas indistintos, antes por curiosidade do que por crueldade, somos seguidos por índios. A propósito, cumpre observar que o filme apresenta também uma releitura do mito rousseauniano do bom selvagem. Depois de capturado pelos nativos, numa cena parecida com a descrita acima, Smith passa um tempo convivendo com eles. A convivência pacífica o leva a considerar a vida deles, num dos muitos e belos monólogos que compõem o filme, livre da ganância e da inveja e da maldade, comuns entre os europeus, como a Utopia realizada. A cena do Smith entre os nativos, aliás, não deixa de remeter por certo à obra anterior do Malick, Além da Linha Vermelha, um filme sui generis de guerra. Entre eles, Smith consuma sua paixão por Pocahontas, que lhe corresponde o amor. De volta ao acampamento, Smith passa a liderar os pioneiros. A partir desse momento, o conflito se instaura, Pocahontas, temendo o destino do amado, toma partido dos ingleses e por isso é renegada pelo pai. Mais tarde será igualmente abandonada por Smith, que, antevendo a impossibilidade do amor, solicita a um amigo lhe digam, para poupá-la, que ele morreu num naufrágio. Como passa a viver, cativa, porém respeitada, em meio aos ingleses, estes são poupados dos ataques dos nativos. A possibilidade de harmonia entre os dois povos, contudo, foi abalada, quiçá irremediavelmente. A tensão decorrente desse conflito inicial definirá daí em diante a história da colonização americana. Sempre me admirou o fato de não ter pego pneumonia quando li O Ano da Morte de Ricardo Reis, do Saramago. Chove tanto e amiúde na Lisboa do livro, sobretudo na primeira metade do romance, que temi adoecer. Brincadeiras à parte, cito isso para lembrar de outra Arte, cujo poder sugestivo no que se refere às emoções e sensações é de tal modo impressionante que basta uma imagem bem realizada do espaço sideral para que sintamos o frio e o silêncio infinito que apavorou Pascal. É curioso, no entanto, que as pessoas se identifiquem a tal ponto, por exemplo, com filmes de terror a ponto de sentir calafrio e medo absolutos, e, ao mesmo tempo, se limitem a bocejar ao ver dramas singelos e realistas. Ora, essa identificação deveria acontecer com todos os filmes, pois sem ela não há Arte, mas tão-somente diversão descompromissada. Contudo, pouco se interessa o público quando se trata de obras que não difiram tanto assim do seu cotidiano. Como disse, buscam o embotamento, não a contemplação. O fato de verem situações parecidas com a que vivemos, que de resto ilumina nossas vidas, apenas as aborrece. São certamente as mesmas pessoas que consideram, para citar um caso conhecido, Encontros e Desencontros, ou a obra-prima Maria Antonieta, filmes monótonos em que nada acontece. Por vezes, o roteiro não é assim tão necessário, bastando o talento do diretor e de sua equipe em traduzir em imagens que nos assombrem tudo quanto querem nos transmitir; é suficiente o olhar de um ator de talento para nos revelar a emoção que antes ignorávamos e que a partir de então sempre saberemos reconhecer dentro de nós e nos outros. Se isso vale para obras em que as personagens, por assim dizer, são gente como nós, tanto mais válido se torna se o filme tem com assunto uma realidade diversa da nossa, que por conta disso tanto mais deveria nos interessar, por menos ação que a obra tenha. A ação, nesse caso, é substituída pela reflexão. É sobretudo pelo roteiro que O Novo Mundo tende a desagradar os espectadores desacostumados a uma história narrada com beleza e tranqüilidade. Há certamente uma lentidão no modo como a história é contada, em que as cenas se sucedem aos saltos, num mosaico de imagens e, mais do que isso, de sensações a serem saboreadas sem pressa. O Novo Mundo é um filme para ser desfrutado, não simplesmente visto com olhos acelerados. Fosse um romance, seria um livro cujo estilo, cujas palavras e imagens e idéias fossem tão importantes quanto a trama; longe, portanto, de um best-seller, cuja justificativa única reside no enredo contado com reconfortantes clichês. A história de Pocahontas, que foi exposta até num desenho homônimo da Disney, não é um mito. O filme do Malick é uma releitura que respeita muito do que a tradição nos legou. A aclamação na Inglaterra da cristã Rebecca, outrora Pocahontas, realmente ocorreu, assim como seu casamento com John Rolfe (um contido Christian Bale), a quem conheceu depois da partida do Smith, e sua morte precoce. Foi muito bem recebida na Inglaterra porque, não fosse sua fidelidade ao Smith, a colonização de Virginia teria sido bem mais difícil, senão mesmo improvável, de vez que os colonos poderiam ter sido massacrados pelos nativos. Já o romance entre ela e Smith não é confirmado, trata-se apenas de especulação. O que Malick traz de novo à história, dando a ela uma nova e autoral dimensão, centra-se principalmente no seu estilo, isto é, na forma como é recontada a história, cuja originalidade sensorial já engrandecemos. É importante frisar também aqueles 3 momentos – a que já aludimos no quarto parágrafo e nos quais se ouve, quero crer que não por acaso, a majestosa música de Wagner –, em que percebi um ganho de consciência por parte dos protagonistas, como que uma nova visão de mundo. O primeiro deles, claro, é o da chegada ao Novo Mundo, quando os ingleses dos navios e os nativos do litoral avistam uns aos outros. É o reconhecimento, pelo choque cultural, da alteridade, do Outro. O segundo momento se dá quando Smith e Pocahontas enfim se apaixonam; é quando, num dos seus monólogos, repletos de poesia ingênua e sentimental, no bom sentido, declara Pocahontas que ela e ele são na verdade um só, o congraçamento do Eu e do Outro, transformado, ou antes fundido, intimamente, abolidas as diferenças de raça, num Eu e Tu. Por fim, temos a cena em que ela brinca com o filho, na Inglaterra, após, uma vez descoberto que Smith não tinha morrido, ter escolhido viver no entanto com o seu marido John Rolfe, ao invés de trocá-lo por Smith, seu primeiro amor, com quem viveu, de acordo com as palavras deles, uma espécie de sonho. Nesta hora, ouvimos John Rolfe, dirigindo-se ao filho, discorrer sobre o falecimento de Rebecca, que, no leito de morte, admitiu que sua morte não tinha importância alguma, uma vez que seu filho continuaria vivendo. Aqui, vejo um avanço em relação ao conceito de mortalidade. Rebecca, esquecida a contingência egoísta do Eu, se apercebe da imortalidade de nossa condição, pois seu filho lhe sucederá, assim como, futuramente, seu neto há de substituir ao filho, exatamente como acontece com os ciclos da Natureza, que se sucedem ano após ano, interminavelmente, e que o filme ilustra com imagens vigorosas, desde já inesquecíveis. Nestes 3 momentos, há a passagem do individual ao universal, que sempre caracterizou a Arte. Primeiramente o Outro; em seguida o Eu e Tu; por último, o Nós. Nesse sentido, O Novo Mundo é menos a América para os ingleses, mais notadamente para o Smith, quando de sua estada entre os nativos, ou, em escala menor, a Europa para a Rebecca, recém convertida ao cristianismo, do que um recente e mais amplo estado de espírito, uma maior e mais nova consciência que se lhe apresenta e também a nós, espectadores. Cito Proust, a propósito, uma vez mais: “A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em buscar novas paisagens, mas novos olhos”. Lembro ainda do caso do filósofo francês Condillac, que inventou, certa vez, num dos seus escritos, uma alegoria sobre uma estátua de mármore que, a pouco e pouco, a partir da percepção, pelo olfato, do cheiro de uma rosa, adquiria consciência, memória, identidade etc., até se tornar um homem pleno. Cada espectador que se dispuser a assistir, com a mente e os olhos receptivos, a uma obra como O Novo Mundo, que, certo, exige um pouco de quem assiste, dando, todavia, o triplo como recompensa, cada um, eu dizia, será tal estátua. Aberto, paciente e sem preconceitos, à experiência sensorial e única que sem dúvida o filme proporciona, há de, ao término da obra, ter adquirido uma nova forma de enxergar a realidade, um aprimoramento dos sentidos todos, mais do que tão-somente da visão. Doravante um Novo Mundo se descortina ante os olhos de mármore e assombrados da estátua. A exemplo de Miranda, personagem de A Tempestade, de Shakespeare – peça que, reza a lenda, teria sido inspirada no naufrágio que vitimou a mulher e a filha de John Rolfe –, ao ver quão maior é o mundo do que sua ilha, do que a tela de Cinema, do que nossas vidas, enfim, numa voz plena de arroubo haveria de exclamar: "Admirável Mundo Novo!". O mais curioso será então constatar que o Novo Mundo é o mesmo Velho Mundo desde sempre. J. de Silentio Com algum atraso da minha parte o Cineclube publica, como prometido, a resenha de O Novo Mundo, feita pelo J. de Silentio. O texto é tão bonito e apropriado ao filme - um dos melhores do ano passado, sem dúvida - que sua inadequação aos padrões do tópico torna-se quase irrelevante. No decorrer da semana inserirei as informações minimamente indispensáveis, como a ficha técnica e os dados do DVD. Enquanto isso, não deixem de conferir essa maravilha de filme e de comentá-lo aqui. Meu trecho preferido? "Não têm mais as pessoas, hoje em dia, o hábito da contemplação". Tão poético quanto verdadeiro. O que acham? Alexei2007-05-22 19:10:21
  4. Esse tópico de novo? Ok ok. Almas Gêmeas é meu preferido. Um diretor bacana, apaixonado pelo que faz e muito competente também. Isso transparece em todos os seus filmes que vi, de Fome Animal a O Senhor dos Anéis (que eu gosto muito). Só não conferi ainda Os Espíritos.
  5. Nossa, só eu vi Comer, Beber, Viver? Procurem esse filme nas locadoras e confiram. Já!
  6. O J. de Silentio também confirmou o envio de seu texto sobre o filme do Terrence Malick, assim como a Veras. A Resenha de O Novo Mundo será publicada amanhã e a de Os Bons Companheiros, fechando esta excelente temporada do Cineclube, na segunda-feira que vem.
  7. Grave of the Fireflies não é do Miyazaki, realmente, mas é lindo demais.
  8. Touro Indomável (Ranging Bull, <?:namespace prefix = st1 ns = "urn:schemas-microsoft-com:office:smarttags" /><?:NAMESPACE PREFIX = ST1 />1980), by The Deadman a Martin Scorsese film<?:namespace prefix = o ns = "urn:schemas-microsoft-com:office:office" /> <?:NAMESPACE PREFIX = O /> O que eu acho: Assim como iniciei meus comentários sobre o filme de Peckinpah “Sob o Domínio do Medo” falando que era sintomático o filme iniciar com uma imagem desfocada que gradativamente vai melhorando, mostrando crianças brincando num playground, conferindo o tom “psicológico” (recorrente, diga-se de passagem... Vide “Meu Ódio Será Tua Herança”) da visão das personagens da história (infantilizada = vilões e distorcida = dos protagonistas) sobre a realidade que os cercava; também aqui em “Touro Indomável” começarei minha resenha tecendo observações em relação à primeira imagem que aparece nesse longa de Scorsese. Sob os acordes belos e melancólicos de Mascagni (intermezzo Cavelleria Rusticana) vemos num ringue um solitário pugilista de roupão com capuz realizando aqueles movimentos típicos que antecedem um confronto a título de aquecimento. Relativamente simples, enquanto vista pelo enfoque de composição de elementos cênicos, há que se observar o inconteste fato de que essa cena dos créditos iniciais é filmada de modo especial e propositalmente repleta de significados intrínsecos à história que está para ser contada. Registrada magnificamente por Michael Chapman em preto e branco (bem como todo o filme), a fotografia (mérito de uma dica quase casual do cineasta Michael Powell quando se referiu a cor “errada” da luva de boxe e do fato das lembranças visuais de Scorsese sobre o esporte no cinema e na TV serem todos de filmes em preto e branco) realça, num tom quase expressionista, os únicos elementos distinguíveis em cena: o lutador e o ringue. Mas, enquanto esse último é banhado por luz (justamente por isso) não conseguimos ver as feições do atleta e muito menos do público em volta. Está tudo banhado em sombras e névoa. Mais: a cena é toda em câmera lenta, fixa e numa tomada única. Não entendo de Cinema, mas na minha admitida ignorância, posso falar do que me enleva, me arrebata em termos visuais: a “estética subjetiva” daquilo almejado no íntimo pelo diretor encontrando eco num simples e incrédulo observador. Os créditos introdutórios de “Ranging Bull” são um dos mais lindos e significativos já feitos em todos os tempos. Simples assim. E o mais foda nisso é que só teremos subsídios para perceber essa beleza APÓS o filme visto. Filmado com um apuro técnico impressionante (fotografia, edição e efeitos sonoros únicos) e tendo por base o roteiro adaptado (além dos creditados Paul Schrader e Mardik Martin, nos extras ficamos sabendo o quanto Scorsese e De Niro imprimiram da visão deles no roteiro do filme, principalmente De Niro que chegou a “cortar” toda uma cena, interpretando-a segundo sua ótica do personagem, improvisando-a completamente) do livro homônimo do próprio Jake La Motta e seu empresário Joseph Carter; “Touro Indomável” teve a história de seu desenvolvimento e filmagens tão conturbadas quanto a história do personagem retratado. Scorsese não andava bem. Tinha acabado de se separar, as críticas a “New Yok, New York “ não foram boas e depois de quase 6 anos de desenvolvimento (sem muito interesse) pelo projeto, se internou numa clínica de reabilitação para viciados em cocaína. Foi graças à insistência e quase obsessão de De Niro pelo livro e persona de Jake que fizeram com que Scorsese se recuperasse e se animasse a colocar sua energia criativa novamente na realização de um filme no qual insistia seria “O Filme” da vida deles. De Niro provou que não estava errado: apesar das várias dificuldades encontradas por Scorsese ao longo do filme (ele não tinha nenhuma intimidade com esportes, muito menos boxe e quando viu o que e como teria que filmar, ficou desesperado...) ele conseguiu fazer um filme que foi posteriormente alçado pela Associação de Críticos Americanos como o melhor da década de 80 além de constar da lista entre os 100 melhores de todos os tempos! Contando a trajetória do mítico boxeador americano Jake La Motta dos idos de 1941 (quando já era famoso pela resistência física e agressividade nos ringues), passando pelo auge na sua carreira quando sagra-se Campeão dos Meio Médios até sua derrocada na qual chega ao fundo do poço sendo preso em 1964 (anos depois de ter perdido o cinturão de Campeão para seu maior rival nos ringues: Sugar Ray Robinson) “Touro Indomável” trata-se de um filme pesado, triste, violento e que termina quase sem redenção. Como o próprio Scorsese teria dito: “Touro Indomável é uma viagem sem parada rumo à autodestruição”. E à despeito de ser um filme que mostra de forma brutal e detalhada a dinâmica da “esgrima dos punhos” (nunca um filme foi tão detalhista, brutal e sangrento em retratar a violência do boxe, chegando às raias de poder ser classificado como uma obra “hiper-realista” graças aos takes minuciosos e aos closes em câmera lenta desconcertantes. Salve, Peckimpah!) não trata-se de um filme sobre boxe, mas sim de um drama que mostra as consequências dos excessos e faltas de um homem completamente dominado por seus medos, inseguranças e paranóias. Jake La Motta (Robert De Niro embasbacante.) em sua busca pela fama e sucesso nos ringues junto com seu irmão e empresário Joey (vivido pelo carismático e competente Joe Pesci. No filme ele vive um personagem “mixado” de duas pessoas reais na vida de Jake: o irmão e seu empresário, Joseph Carter) nos é apresentado como um lutador impiedoso e já na primeira cena de luta podemos antever o que Scorsese nos oferecerá em termos de embates... Logo em seguida, somos conduzidos para um ambiente totalmente diferente. Um ambiente familiar, típico do Bronx com seus prédios colados, sons vindos da rua, música e aquilo que parece ser um almoço corriqueiro com a esposa (1ª esposa) encerra em si um clima de hostilidade e insatisfação visível que culmina num acesso de fúria memorável onde temos um vislumbre da personalidade conturbada, machista e agressiva de Jake que, também dono de um comportamento obsessivo absurdo (a cena do bife é excelente!), parece não ter freios morais que o impeçam de fazer o que quer e como quer. Aliás, essa cena também é indicativa de que, entre vários fantasmas, Jake também sofria de um terrível complexo de inferioridade (sua conversa com o irmão sobre o “problema” de ter mãos pequenas é reveladora) e esse complexo, aliado à obsessão que começa a nutrir pela bela Vickie (Cathy Moriarty) são ingredientes mais que suficientes para desencadear a série de desencontros e tragédias intímas que passam a fazer parte de sua vida levando o, bem como todos à sua volta ao declínio. Interpretada na medida exata por Cathy Moriarty, Vickie é retratada por Scorsese quase como uma femme fatale, mas com um quê de ingenuidade (escolha correta, considerando que na ocasião em que Jake a conhece ela tinha apenas 15 anos). Aqui vale comentar que o caráter femme fatale de Vickie entra nem tanto no sentido conhecido do tipo “sabendo-se-poderosa-fode-com-a-vida-do-cara”, mas no sentido de ser uma garota que “sabendo-se-desejada-por-vários-homens” usa seu magnetismo, seu charme como moeda de barganha para acabar com aquele que mais tenha a oferecer em termos de status já que sendo uma “garota do bairro” desfilar com um “partidão”, famoso e dentro de um carrão é o máximo! O problema é que Vickie tem o azar de se envolver justamente com um homem possessivo e ciumento e seja por imaturidade, seja por inabilidade, não consegue ajudar esse homem a trabalhar suas paranóias e reações exageradas. Jake (por natureza) inábil socialmente, não confia em ninguém exceto em si mesmo e vê o todos à sua volta como possíveis adversários (incluindo aí a nova esposa e o próprio irmão). Sua visão deturpada, principalmente de Vickie e das situações que a cercam, é magistralmente filmada por Scorsese em cenas em câmera lenta, retratando tanto o êxtase (quando a vê pela 1ª vez na piscina do clube do bairro) quanto à angústia que seu ciúme doentio o fazia sentir. Corroído por suas inseguranças (em relação à Vickie), seus medos (de ser traído) e frustrações (ainda não tinha conseguido o tão almejado título de Campeão Mundial da Catégoria, nunca poderia enfrentar o Campeão dos Peso Pesados devido seu biotipo, além de ter que se submeter à “máfia” das apostas – a cena em que faz uma luta “armada” é a única que parece falsa e mal feita. Obviamente proposital, foi uma sacada de mestre de Scorsese entre tantas nesse filme. Isso sem falar na reação devastadora que a luta tem sobre Jake após a mesma...), Jake só encontrava uma forma de exorcizá-los: na base da porrada! E aí temos as fantásticas lutas protagonizadas por esse homem em que bater e apanhar não fazia muita diferença, apenas dependia do seu estado de espírito (a edição das lutas e a filmagem das mesmas são todas diferentes entre si. Fantástico!). Partindo pra cima dos adversários como um “touro” (o apelido não era à toa) os usava como saco de pancada, descarregando neles tudo que sentia. Nesse aspecto podemos perceber que à despeito de ser um atleta, na verdade Jake era um ator que usava o ringue como cenário onde interpretava (descarregava) seus sentimentos e angústias através de movimentos ora rítmicos, ora desencontrados; ora esquivando-se, ora partindo para o ataque; mas todos com a única intenção de vencer, de massacrar o adversário encontrando assim algum alívio. Aliás, pode-se dizer que não era só nos ringues que ele atuava, mas na vida privada também. Ele fingia ser pai, fingia ser marido, fingia ser irmão. Jake não tinha vida, ele simplesmente “atuava”. Uma encenação marcada por atos e comportamentos violentos onde se aproveitava de sua presença e imponência física para submeter todos à sua volta dentro dos seus parâmetros de conduta. Jake só se compreendia e se entendia como alguém quando usava a força, os punhos. Há uma cena indicativa nesse sentido quando questionado pelo “dono” do bairro (Tommy): “Are you felling good?” - um pouco antes de acontecer uma luta - ao que responde: “I gotta get in there and fight, then I’ll know how I’m gonna fell.!”). Fingindo, não percebeu que a vida de verdade e tudo aquilo que importava, escorria por entre seus dedos. Mas, apesar de tudo isso, Jake sabia que em cima do ringue atuava bem. Era imbatível. Mesmo quando perde o título, já derrotado, destruído fisicamente (a surra que toma é filmada sem concessões) dá a entender que aquilo só aconteceu porque ELE quis e não por mérito do outro (já havia derrotado Sugar Ray outras 2 vezes e perdido por pontos em outra, mas em todas as lutas levou o cara ao chão várias vezes) tanto que ao final da luta comenta em tom quase inaudível à um atônito Sugar Ray: “Eu não caí Ray. Você não conseguiu me derrubar! Vê? Ainda estou de pé! Eu queria continuar... Você não me derrubou, Ray!!” Em resumo, o máximo de vida que Jake “viveu” entre 1941 e 1964 foram os momentos que passou nos ringues, dando e levando quantidades colossais de porrada. A expressão máxima do que era em essência (incontrolável, obsessivo e violento) só se expressava sem julgamentos, sem cobranças e culpa entre as cordas de um ringue e nesse ritmo descontrolado conseguiu levar a vida até o momento em que transtornado por suas obsessões em relação à Vickie e seu imaginado comportamento lascivo, perde o apoio do irmão (numa assustadora cena em que Jake espanca o irmão. Tão realista que dá a impressão de que pessoas saíram machucadas...). Se na ocasião em que isso ocorre já era visível sua decadência e dificuldade de manter-se no mundo do boxe, a falta do apoio do irmão mostra-se crucial para sua queda definitiva, pois apesar de ser indestrutível no ringue, só o era porque psicologicamente era amparado pelo irmão, seu esteio emocional fora das cordas, alguém que mesmo tendo alguns traços parecidos com os dele (a cena em que um Joe Pesci irascível surra um cara com quase o dobro de seu tamanho é incrível e me lembrou muito seu desempenho anos depois em uma cena parecida em “Os Bons Companheiros” - de novo com De Niro e Scorcese) era mais sociável e procurava ter uma vida comum. A partir daí o filme já mostra um Jake La Motta fisicamente decadente (Robert De Niro quase irreconhecível e...sem comentários!), mais velho, dono de uma boate “meia boca” em que faz as honras da casa contando piadas sem graça e que, de uma hora pra outra, se vê surpreendido com a decisão de sua já nem tanto idolatrada esposa (que com o tempo passou de centro de sua atenção e carinho, apenas para ser a mãe de seus filhos, um bibelô, um objeto de sua paranóia) de se separar dele. Para piorar, acaba sendo preso por corrupção de menores pouco tempo depois. Sem dinheiro, sem amigos, sem esposa, sem filhos, sem irmão (ele até tenta uma reaproximação, mas fracassa de forma patética e melancólica) só resta à ele se prestar a fazer pequenas apresentações como “showman” em boates de strip tease de quinta categoria. O final do filme é de uma pungência atroz, pois ao mesmo tempo em que confere uma certa “melhora” na sua condição de apresentador (a cena indica ser um hotel de certa classe e ouvimos um homem avisando-o que a casa está cheia), mostra a decadência de Jake La Motta enquanto Homem, face ao que poderia ter sido e não foi. Garrafas de bebidas espalhadas. O desleixo de um camarim. Uma lâmpada incandescente pende nua do teto e ao fundo, o som da sua voz ensaindo textos de clássicos da literatura inglesa numa interpretação comovente e triste. Só aí me veio uma sensação estranha: parece que no fim das contas, Scorsese busca retratar Jake com mais carinho e não taão seco e duro como o fez até ali. Talvez num arroubo de sensibilidade extra por perceber que mesmo naquela situação quase patética e cômica havia uma certa redenção. Se não uma redenção, pelo menos a busca por uma, pois apesar de estar recitando textos, interpretando-os, há um quê de arrependimento e de sentimento real em sua voz e ele parece entender tudo o que pôs a perder (mesmo que o texto do monólogo ao final do filme jogue a “culpa” de seu fracasso no irmão, há que se perceber o tom amargo e de auto-referência). E aqui voltamos à cena dos créditos iniciais. Ela condensa em poucos minutos todo o filme, mostrando que à despeito da fama, dos holofotes, do sucesso e de ser imbatível nos ringues, Jake vivia nas sombras de seus medos, na névoa das suas inseguranças e paranóias. Não vendo nada, nem ninguém pagou um preço alto pelas escolhas que fez e aquelas que deixou de fazer ficando, ao final, só perante seu maior adversário; aquele que o derrotou implacavelmente e de modo definitivo: ele mesmo. O que não perder: TUDO!! Mas, com algumas considerações em especial, a saber: - A interpretação de Robert De Niro, figurando fácil, fácil como uma das mais elegantes, inteiras e competentes que um ator jamais foi capaz de realizar. Há tempos obcecado pelo papel, treinou com o próprio La Motta e se entregou tanto ao papel (chegando a engordar inacreditáveis 27 kg para a fazer a fase decadente de Jake) que ao fim do período de treinamento ouviu do próprio La Motta que estava completamente apto a lutar profissionalmente se assim o quisesse. - Preste atenção aos sons que rolam durante as lutas. É possível ouvir gritos, sons de animais e outras coisas estranhas que nem mesmo Scorsese sabe como e o que foi usado. - Repare como a ambientação dos ringues muda conforme o estado de espírito de Jake e de como a luta se desenvolve. Scorsese filmou cada luta, cada golpe com uma única câmera, take por take. Coube a Thelma Schoonmaker (com a supervisão de Scorsese, obviamente) a edição de cada uma delas. Aliás, Thelma chega a dizer com notável sinceridade que metade do Oscar que ganhou por seu trabalho nesse filme é de Scorsese, visto que o realizou seguindo precisamente os “story boards” que Scorsese havia feito antes para cada cena. - Há um quê de homenagem a Marlon Brando no monólogo final tanto por seu papel em “Sindicato de Ladrões” (fala de Terry ao irmão Charley no mencionado filme) quanto à composição interpretando do próprio para Don Vitor Corleone em “O Poderoso Chefão” (note a postura e a expressão corporal de De Niro frente ao espelho). Além é claro de uma auto-referência iconográfica à outro personagem marcante de De Niro: Travis Bickle. - Os extras do DVD duplo Edição de Colecionador são imperdíveis!! Demorou, mas valeu a pena. Touro Indomável é um filme muito rico em significados e executado de maneira irrepreensível pelo Martin Scorsese, aspectos que o Deadman captou com muita felicidade. Esse é um daqueles filmes tão bonitos que só nos resta ler o belo texto e reviver as imagens, sensacionais. Se alguém discorda, não se sinta tolhido: venha e comente!
  9. Quero comunicar que recebi a resenha do Deadman, e está realmente imperdível. Dada minha exaustão momentânea, a publicação será feita amanhã. Desculpem o transtorno e agradeço a compreensão.
  10. Não sei de quem vocês estão falando, mas não sou o Folco. E continuo achando que essa lista ficou uma droga, com tantos filmes bons sem qualquer menção. Pensar assim é um direito meu, não? Em nenhum momento afirmei que tinha todo o conhecimento do mundo. Aliás, se eu disser isso qualquer dia, me empreste sua camisa de força, rapaz. Eu é que precisarei dela.
  11. Sim, Veras. Ainda estou recebendo os textos. Colegas, o Deadman teve alguns contratempos e só enviará sua crítica hoje à noite ou amanhã pela manhã. A resenha de Touro Indomável será publicada nesta terça-feira próxima, dia 15 de maio, portanto.
  12. For the record, reforço o coro para que a Ana seja entrevistada. Hehe.
  13. Só terminei de ler a entrevista agora, ficou ótima! Foi muito bom conhecer melhor o Tensor durante o BBBCeC, pois é uma pessoa que eu praticamente não tinha contato. Ele é, sem dúvida, um cara inteligente e autêntico (a entrevista confirma isso). Parabéns, inclusive pela vitória! Parabéns também ao Moviola pela retomada do Pinga-Fogo. Já estava na hora mesmo, hehe.
  14. Jail, recebi sua MP. Não se preocupe, não teve problema nenhum, hehe. Valeu!
  15. A Criança, by Garami Filme: A Criança (L’Enfant, 2005) – dir.: Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne Sinopse: Bruno e Sonia tiveram um filho. Por viver basicamente de esmolas e furtos, Bruno vê no pequeno Jimmy uma nova forma de conseguir dinheiro e o vende para adoção ilegal. O que eu acho: A adoção ilegal de crianças é uma realidade que perdura em vários lugares do mundo. Seja na França, onde o filme “A Criança” se passa, seja no Brasil. Em território nacional, aliás, tal procedimento é chamado de “adoção à brasileira” e consiste na doação de crianças a pessoas com maiores condições financeiras ou, simplesmente, na venda de crianças a casais que desejem registrar uma criança em seu nome. De uma maneira ou de outra, tal prática é crime e passível de severas sanções. Mesmo desconhecendo a Legislação francesa, creio poder afirmar que tal prática também não deve ser vista com bons olhos na terra dos irmãos Dardenne. Porém, em “A Criança”, os Dardenne não estão interessados em mostrar as terríveis conseqüências legais que desabam sobre aquele que vende uma criança na França. Ao invés disso, eles preferem mostrar como um jovem à margem da sociedade comete um erro que vai se emendando a outros até formar uma grande teia, da qual ele não tem a menor chance de escapar. O filme, totalmente merecedor da Palma de Ouro, com a qual foi agraciado, é uma aula de observação, onde os diretores não pretendem perdem seu tempo apontando fatores: é um filme de ação e reação. A belíssima fotografia, a câmera quase documental e a ausência de trilha sonora instigam o espectador a querer saber o que realmente se passa pela cabeça dos personagens e mostram que, para tanto, é preciso acompanhá-los. Persigamos, portanto, os passos de Bruno, aquele que erra. PARTE I – Em Busca de Bruno<?:NAMESPACE PREFIX = O /> Sonia acaba de sair do hospital e tem uma criança em seu colo. Ela e seu namorado, Bruno, resolveram chamar o bebê de Jimmy, mas ainda buscam um segundo nome para a criança. É uma tarde de inverno francês. Está ventando e Sonia protege Jimmy como pode. Indo até seu apartamento, ela descobre que este foi alugado para estranhos por seu namorado. Ela vai até um orelhão e tenta ligar para o namorado, sem sucesso. A pé, carregando uma criança de oito dias, Sonia atravessa estradas onde os carros não fazem a menor menção de desacelerar para que uma jovem mãe possa chegar ao outro lado. A garota chega até a margem do rio, onde Bruno montou seu “quartel general”, porém, ele não está ali. Ela tenta, novamente, telefonar para ele, mas não consegue contato. Após pegar carona com um motoqueiro, ela enfim encontra o namorado. Bruno está na esquina de um restaurante, pedindo esmolas aos motoristas que param no semáforo. O primeiro contato de Bruno com seu filho não só mostra a total falta de habilidade dele com bebês, como também expõe o fato de que Bruno ainda não concebe a responsabilidade que recaiu sobre seus ombros. No momento, o rapaz está mais interessado em espreitar sua próxima vítima, que está no restaurante, do que demonstrar um pouco de atenção por seu filho. Após o assalto ser realizado, voltam todos para o quartel-general de Bruno. PARTE II – O Universo de Bruno Bruno e seus dois pequenos comparsas dividem os resultados da pilhagem em proporções não exatamente justas: os dois garotos ficam com 10% cada um e Bruno, por ser o líder, embolsa o resto dos ganhos. O lugar onde eles estão é aquele por qual Sonia já passou anteriormente: à beira de um rio, próximo a uma grande ponte, existe uma pequena construção, onde Bruno e seus pequenos capangas se escondem. Após a divisão, a qual Sonia observou pacientemente, os garotos vão embora e Bruno volta para perto de Sonia. Ambos conversam brevemente sobre o parto e a garota pede para que seu companheiro toque sua barriga. Mesmo obedecendo, é perceptível que tudo aquilo é estranho para Bruno. Para evitar o embaraço de Sonia pedir-lhe para segurar o pequeno Jimmy mais uma vez, Bruno recomenda que eles vão para um albergue, para passar a noite. Ele mostra a Sonia sua nova jaqueta e ela o interroga sobre como ele a conseguiu. “Eu não poderia ter roubado isso”, ele responde. Antes de encaminharem-se ao albergue, Sonia derruba Bruno sobre as pedras e os dois iniciam uma brincadeira de arremessar pedras um contra o outro. Se ignorarmos o fato de que Sonia tinha um bebê em seu colo e que não é exatamente recomendável brincadeiras desse gênero quando se carrega uma criança, podemos perceber que esta é a segunda situação onde podemos ver um Bruno totalmente concentrado naquilo que faz. No universo dele, os furtos e as brincadeiras inconseqüentes encontram abrigo. Porém, Sonia e Jimmy também encontrariam? Enfim, chegando ao albergue, eles descobrem estar atrasados. Bruno argumenta com desculpas esfarrapadas sobre ônibus perdidos, mas a porta do albergue somente se abre quando Sonia declara estar carregando um bebê. O casal se despede na ala feminina (após Sonia ter que lembrar Bruno sobre o beijo de boa noite em Jimmy) e Bruno, após se recolher, recebe uma ligação: é hora de vender os últimos itens que sobraram do assalto. Saindo no meio da noite, Bruno encontra-se com uma mulher em um bar e negocia com ela o preço de uma filmadora. Após feitas as negociações, a mulher pergunta sobre Jimmy... e sobre a possibilidade de Bruno vendê-lo. Como qualquer pessoa de bem que se preze, Bruno diz não. Jimmy faz parte do universo de Bruno. Ao menos, é isso o que parece. No dia seguinte, a nova família vai passear! Bruno aluga um carro e compra um carrinho de bebê para Jimmy. Os três passeam, se divertem (com mais algumas brincadeiras inconseqüentes) e Bruno mostra-se novamente desconfortável com a idéia de terem de registrar Jimmy. Após o breve passeio, eles voltam ao apartamento. Após a visita da assistente social, Sonia discute com Bruno uma oferta de emprego. “Mil euros por mês!”, diz ela. “Não quero trabalhar para babacas”, diz ele. Para fugir da conversa incômoda, Bruno compra uma jaqueta igual a sua para Sonia e então vão ao cartório. Jimmy está registrado. Na seqüência, vão ao banco. A fila está muito grande. Bruno sai passear com Jimmy, para matar um tempo. E então percebe que o bebê, as despesas, a necessidade de um emprego e, principalmente, as cobranças de Sonia não fazem parte de seu universo. Em uma atitude rápida, Bruno liga para a mulher e diz que quer conversar com as pessoas que compram os bebês. Sonia ainda cabe em seu universo... Jimmy não... PARTE III - Une Femme Blessée Tentando ser o mais ágil possível, Bruno acerta os detalhes para a venda. Vai até um prédio, entra em um apartamento e deixa Jimmy deitado sobre sua jaqueta, em um canto do apartamento vazio. Vai até um outro cômodo e se fecha lá: faz parte do acordo que ele não veja os rostos das pessoas envolvidas na compra. Após alguns momentos, ele ouve sons e, quando estes cessam, Bruno volta à sala e encontra um envelope contendo aquilo que ele tanto almeja. Bruno é inconseqüente. Ele sai do prédio empurrando o carrinho de bebê vazio e sequer sabe o que dizer a Sonia ainda. Ao encontrar-se com ela, o rapaz joga a verdade para sua namorada: “eu vendi ele”. Ainda incrédula, Sonia continua a interrogar Bruno e este, vendo que não fora boa idéia dizer a verdade, inventa que roubaram-lhe Jimmy durante o passeio no parque. Não funcionou. Um grande erro pede uma grande desculpa esfarrapada: “vamos fazer outro”, diz Bruno. Sonia desmaia. Sem conseguir reanimá-la, Bruno a levanta e tenta carregá-la até um hospital. Aqui reside uma metáfora sutil e bem empregada pelos Dardenne: Bruno, em vários momentos, precisa parar e “ajeitar” Sonia em seu colo. Sonia é o peso de seu erro. E Bruno, em sua imensa imaturidade, jamais parou para pensar se era capaz de aguentar o peso daquele erro. Uma vez no hospital, o medo toma conta de Bruno: Sonia poderia delatá-lo após acordar! Desesperado com essa (óbvia) possibilidade, Bruno liga novamente para a mulher que o convencera a vender Jimmy e diz que quer desfazer o negócio. Jamais passara por sua mente que, talvez, Sonia preferisse a criança ao dinheiro. Jamais passara por sua mente que Sonia poderia vir a fazer as vezes da fêmea ultrajada por terem lhe roubado a cria. Perder alguns milhares de euros ainda era melhor do que ir para a cadeia. Bruno agiliza-se novamente: desta vez para desfazer seu erro. PARTE IV – Entrando numa Fria Maior Ainda Desta vez, o local combinado é uma garagem abandonada. Bruno entra em uma das garagens, a fecha e aguarda instruções. Após alguns instantes, uma voz vinda da garagem ao lado ordena que o rapaz devolva o dinheiro. Bruno alcança o dinheiro para o homem, que conta nota por nota. Após a confirmação do valor, tal homem diz que Bruno pode sair da garagem após ouvir o barulho do carro saindo. Bruno obedece, mas ainda guarda em si o temor de ter sido enganado: e se não tivessem deixado Jimmy? Felizmente, não era o caso. Bruno vai até a garagem ao lado e encontra a criança. Entretanto, mal sabia ele que problemas maiores estavam por vir: caminhando para longe daquelas garagens, é abordado por um homem que informa que Bruno está em dívida com eles. “Eu devolvi o dinheiro”, alega Bruno. “Nós perdemos em dobro”, anuncia o homem. A falta de visão de Bruno ao vender Jimmy o leva até essa complicação maior, mas isso é apenas o começo. Mesmo devolvendo Jimmy, Bruno ainda tem que prestar contas à polícia sobre onde estava a criança e Bruno, vendo-se sem saída, corre justamente para aquele recurso que uma pessoa como ele detestaria usar: “O bebê estava com minha mãe”. Na seqüência, Bruno não é só abandonado por Sonia, que não o quer mais por perto (“Já pedi desculpas! Achei que poderíamos ter feito outro...”), como também nos revela que, talvez, ele não seja do jeito que é apenas por sua própria culpa. Ao nos apresentar à sua mãe, ele nos mostra o possível motivo para que viva, praticamente, na rua: aparentemente, Bruno e o “namorado novo da mamãe” se desentenderam e ele foi posto para fora de casa. Aparentemente, também, pelo tom com que Bruno fala com sua mãe, sua vida não deve ter sido fácil. E é aí que reside um dos pontos mais interessantes da obra dos Dardenne: eles, definitivamente, não querem nem saber das dificuldades pelas quais seu protagonista passou. Não existe “ah, ele vendeu a criança porque teve uma vida difícil”, mas sim “ele vendeu a criança e agora VAI TER uma vida difícil”. A “diversão” está apenas começando. Na sucessão dos fatos, vemos Bruno sendo espancado e “roubado” pelos criminosos para os quais ele deve, implorando perdão, mendigando centavos para poder comer e sendo rejeitado por Sonia mais uma vez. Bruno está enrascado e precisa achar uma saída. PARTE V – A Arte de Catalisar um Erro Envolvido em um grande problema, Bruno precisa de uma solução rápida para levantar o dinheiro que os criminosos querem. Para tal fim, ele vai atrás de um de seus “companheiros trombadinhas”, Steve. Munidos de uma scooter e de muita inconseqüência, os dois roubam a bolsa de uma mulher e saem em disparada, porém, são perseguidos de perto por um carro. Seria, de fato, uma ótima perseguição “cinematográfica” se os Dardenne não fizessem questão de nos mostrar o quão ridícula a situação é. Após algumas manobras arriscadas, Bruno e Steve enfim conseguem despistar o carro, mas, ao tentarem passar por trás de um conteiner a scooter enrosca em arames e não consegue passar. Deixando o veículo para trás, nossos intrépidos delinqüentes se escondem atrás de uma pilha de vigas de metal e aproveitam para esconder o dinheiro que roubaram embaixo dela. Quando planejavam, enfim, sair do esconderijo, eles percebem que a barra não está limpa: o motorista daquele carro estava os alcançando. Bruno, então, decide que a melhor forma de fugir é entrando no rio. Os dois andam por uma estreita e danificada passarela e entram no rio, escondendo-se debaixo da mesma passarela. Seria, de fato, uma ótima saída se eles não estivessem na França, onde o inverno é rigoroso, o que faz com que a água fique bastante gelada. Após alguns momentos imerso, Steve começa a sofrer os efeitos da hipotermia e quase se afoga. Bruno o tira da água e o leva para uma pequena construção abandonada, onde tenta reativar a circulação do garoto. Lembrando-se do dinheiro, Bruno pede para que Steve aguarde alguns instantes, para que ele busque o dinheiro embaixo das vigas. Contudo, esse breve instante em que Steve fica sozinho acaba resultando na sua captura. Sozinho, Bruno desenrosca a scooter e a empurra por algumas ruas, até chegar a um hospital. Lá, ele pergunta por Steve e, ao encontrá-lo junto com uma assistente social, devolve o dinheiro do roubo e se entrega, assumindo a autoria do roubo. Bruno, enfim, chegara ao fundo do poço: sua última carta na manga falhara e ele já não via mais chances de conseguir saldar sua dívida com os bandidos que o atormentavam. Um erro levara a outro e, nessa última tentativa, ele não só se prejudicara como quase levara Steve junto com ele. PARTE VI – O Golpe de Misericórdia Bruno, enfim, está preso. E a última cena dessa obra-prima dos Irmãos Dardenne é justamente durante uma visita de Sonia a Bruno. Eles trocam algumas palavras e, então, Bruno começa a chorar. Ambos se abraçam, se tocam. É essa cena silenciosa e aparentemente terna, que se concentra o ápice do filme: Bruno, enfim, admite-se como o personagem-título. Não é de Jimmy, o pobre bebê vendido pelo pai, a “criança” do título, mas sim Bruno, uma pessoa de aproximadamente 20 anos que não consegue ter atitudes condizentes com sua própria idade. Em diversos momentos do filme testemunhamos a infantilidade de Bruno, percebemos o quão imaturo ele é (ressalto, principalmente, a cena em que Bruno está aguardando a ligação das pessoas que comprarão Jimmy e, enquanto espera, brinca de pisar em poças de lama e chutar uma parede, vendo o quão alto consegue alcançar). Porém, faltava Bruno admitir sua imaturidade. Tudo o que ele fez descende da sua falta de seriedade com a vida e com o que o cerca. Provavelmente, existem alguns fatores sociais que deveriam ser analisados e que poderiam atenuar a culpa de Bruno. Mas, nenhum fator social ou de criação justificaria a falta de maturidade de Bruno, uma vez que a partir de uma determinada idade, o responsável pelo seu crescimento é ele mesmo! Em nome de uma falsa “vida divertida”, Bruno negligenciou seu amadurecimento e acabou envolvendo e influenciando muitas pessoas com suas atitudes egocentricas e infantis. Sonia e Steve podem até ser duas dessas pessoas, mas o filme não descarta a culpa que esses dois personagens também possuem. Sonia também reconhece sua própria culpa ao chorar com Bruno. A única verdadeira vítima de espectros sociais negativos é o pequeno Jimmy: fruto da inconseqüência de dois jovens, Jimmy poderia acabar trilhando exatamente o mesmo caminho que seu pai. Porém, graças a Sonia (a única personagem passível de receber atenuação por seus atos, uma vez que “acordou para a vida” após o nascimento de Jimmy), que conseguiu abrir seus olhos a tempo, ele possui uma chance. Enfim, este é o golpe de misericórdia em Bruno: ele desperta para seus erros e percebe que ninguém irá “passar a mão em sua cabeça”. O sofrimento está apenas começando. A culpa está apenas começando. E é nesse momento final, também, que desvendamos o mistério do porquê o filme não possuir música. Não se trata de Bruno ter uma vida triste e, portanto, sem música. Muito pelo contrário! O filme não tem música porque Bruno não a merece. Preste atenção: Nas belas e seguras atuações e em todo o clima “frio” ao redor de Bruno: o meio em que ele vive reflete a indiferença e a frieza de seu ser. O que já se disse: “Um filme de gênero que rejeita artifícios e funciona tão bem como. Um filme ficcional de modelo documental. Um filme de corpos livres que se tornam regidos por emoções alienígenas. Um filme premiado com a Palma de Ouro que o grande público pode finalmente entender por que foi premiado.” (Bernardo Krivochein) Porque não perder: Porque é a prova cabal de que não são necessários grandes diálogos para expressar grandes emoções. O Garami é um daqueles usuários que não se expressam com muita freqüência, mas quando o fazem, é bom prestar atenção. Esse texto maravilhoso para o filme dos Irmãos Dardenne é prova disso. De maneira muito competente, o Garami descreve o filme e o interpreta, indicando os vários elementos que utilizou para chegar a tais conclusões. Um trabalho de primeira linha. O filme não fica atrás. A Criança é brutal em seu silêncio, cruel e, ao mesmo tempo, piedoso com a falibilidade humana. Um dos melhores filmes desta década, resenhado por um dos usuários mais talentosos desse fórum. Imperdível.
  16. Postei isso no tópico "O Que Você Anda Vendo e Comentando?": Sunshine - Alerta Solar, de Danny Boyle. Gostei muito, muito, muito. Além dos planos espetaculares - esse é um filme que deve ser visto no cinema - tem personagens que vão se despindo sem prejudicar a fluência da trama, em situações naturais (o filme não pára e avisa "esse é o momento de vocês, espectadores, conhecerem fulano"). Edição de imagem e de som incrível. Um dos melhores do ano, pra mim, até o momento. Depois volto pra discutir outras coisas, mas o filme continua muito forte na minha cabeça desde que o vi.
  17. O cara é um gênio. Nem sei por onde começar os elogios, hehe. Chihiro, Mononoke e Totoro são absurdamente bons. O Castelo Animado eu considero um pouquinho inferior, e é sensacional ainda assim.
  18. 2 - Sim. Estou ansioso, mas não muito. Gostei demais de Kill Bill; isso explica a boa expectativa. Só espero que Tarantino pegue leve nas auto-referências, uma armadilha que ele está perigando cair em Grindhouse. Vamos ver.
  19. Por sugestão do ltrhpsm, este tópico se destina a discutir o estilo e a filmografia do cineasta Robert Altman. Meu diretor preferido, Altman foi, possivelmente, o pioneiro na construção dos chamados filmes-mosaico, painéis de personagens cujas histórias não precisavam necessariamente se misturar ou mesmo se resolver, mas que mostravam muito sobre a alma humana e sobre a própria vida. São do Altman alguns dos meus filmes mais queridos: McCabe and Mrs. Miller, Short Cuts - Cenas da Vida, O Jogador, De Corpo e Alma. Falecido em novembro do ano passado, seu derradeiro filme, A Última Noite, contém os marcadores mais importantes de seu estilo: personagens dispostos em painel, exímio uso da edição de imagens e de som - que colocam o espectador no meio dos personagens, como se fizesse parte da ação -, manejo gracioso e sofisticado da câmera e uma forma carinhosa de transmitir ao público o ciclo de renovação da vida. Esse filme foi concebido como uma despedida do diretor, que contou com a ajuda do Paul Thomas Anderson - admirador confesso do Altman - como assistente de direção.Alexei2007-05-02 12:26:12
  20. Casa de Areia e Névoa, by Th@t@_Patty Filme: House of Sand and Fog (2003), de Vadim Perelman. Com Ben Kingsley, Jennifer Connelly, Shohreh Aghdasloo, Ron eldard. Sinopse: Um erro do governo faz com que uma casa seja colocada em leilão, colocando em lados opostos a antiga dona e um imigrante iraniano que a comprou. Recebeu 3 indicações ao Oscar. O que eu acho: Catarse, como fora conceituada por Aristóteles, é a purificação das almas através da descarga emocional provocada por um drama. Segundo o filósofo, para suscitar a catarse era preciso que o herói passasse da dita para a desdita, ou seja, da felicidade para a infelicidade. E mais ainda: não pode ser por acaso, e sim por uma desmedida, ou seja, por uma ação ou escolha mal feita do herói. Desde a antigüidade, os sombrios caminhos percorridos por nossos corações, percalçados por desventuras decorrentes de nossas escolhas é um motivo recorrente nas artes. Através deste tema, somos transportados de nossa realidade para uma outra, empatizamos com o próximo e, por alguns momentos, diferentes pessoas, de diferentes origens e princípios morais, compartilham um entendimento daquela alma, daquela dor, e então, a partir desta, de acordo com o filósofo grego, expurgamos nossas próprias mazelas. No trágico Casa de Areia e Névoa, acompanhamos o desenrolar do embate entre Kathy Nicolo (Jennifer Connelly) e Massoud Amir Behrani (Ben Kingsley) pela casa do título e todas as suas muitas significações. Ao tomarem simples decisões que até então, acreditavam serem pertinentes apenas a si mesmos (e no caso de Behrani a sua família), acabam presos em uma disputa dolorosa para todos que os cercam. Mas é o compartilhamento gradual dessa dor o motivo mais comovente da película. Não apenas Kathy ou Behrani mas todas aquelas pessoas parecem estátuas de vidro, presas em uma carcaça intransponível, solitárias, desesperadas por compreensão. Até então, Behrani, um homem absolutamente racional, mostra-se muito eloqüente, um interlocutor sempre perspicaz, mas que ainda sim não consegue estabelecer uma comunicação eficaz com sua esposa, frente a quem acaba sucumbindo e perdendo a calma, como se os anseios daquela mulher estivessem além de sua capacidade de entendimento, o que é compreensível considerando que em contraste a ele, ela mostra-se uma pessoa geralmente mais emocional e menos rígida. Esse contraste também é estabelecido de certa forma por Kathy, que apesar de sempre aparentando uma vulnerabilidade tão intensa, continua lutando. E que assim como Nadi (Shohreh Aghdasloo) , expressa através de seus olhares todo o seu desamparo e todo o seu desespero. Para mim as conversas entre as duas são os momentos mais dramáticos de toda a projeção. Ambas estão perdidas, ambas se apoiam em homens complicados e arrogantes, ambas estão tentando proteger o que amam com as poucas armas que têm. Por muitas vezes lutar é a única maneira da qual dispomos para manter a integridade de nossas almas. Mesmo que elas já não estejam íntegras há muito. E guerreiros são revelados nas personalidades mais improváveis. A luta entre Nicolo e Behrani proporciona que as perspectivas comecem a se abrir. No outro dia eu estava discutindo com meus leitores do TeleSéries sobre ética subjetivista e ética objetivista. Enquanto na primeira nossos gostos pessoais seriam o que é certo pela nossa ética pessoal, na segunda teríamos um ponto de vista mais consciente das vontades pessoais alheias, e uma ética mais imparcial. É claro que são conceitos bem mais complexos, mas eu apenas queria estabelecer mais ou menos sobre o que estou prestes a falar. Eu tive a impressão de que ao longo do filme tanto Kathy quanto Behrani vão migrando gradualmente de uma posição subjetivista, apesar de bem embasada em argumentos racionais sólidos, para um posição mais objetivista. Especialmente a partir da tentativa de suicídio de Kathy com a arma. Em contrapartida, Lester (Ron Eldard) que parece ser a figura sempre no curso trágico das negociações, na minha opinião o próprio EUA com aquela sua pose insuportável de mediador, e na verdade se revelando o condutor aos resultados mais absolutamente arrasadores com sua intervenção incendiária, parece tornar-se mais e mais subjetivista a medida que o tempo passa, sempre colocando suas necessidades e de Kathy a frente daquelas pessoas por quem deixa bem claro um certo traço de desprezo cada vez mais presente nas sociedades cada vez mais xenófobas dos países desenvolvidos, especialmente a própria sociedade americana. Eu também achei muito interessante que o enredo remeta a um outro assunto muito atual. Da mesma maneira que Kathy e Behrani, pessoas tão completamente distintas disputam pela casa, vários povos diferentes lutam por um mesmo território, seja a Palestina, a Caxemira, ou os próprios Rio de Janeiro e São Paulo com suas segregações sociais, Casa de Areia e Névoa é uma boa retratação dos conflitos entre as pessoas pelo direito de possuir um espaço. O lugar onde vivemos é geralmente nossa referência em segurança, mas aos poucos o mundo vai vivendo uma realidade em que a violência e o medo vão tomando nossos lares, a medida que o espaço geográfico vai se tornando diminuto frente a quantidade de pessoas que desejam ocupá-lo. O filme é eficiente em retratar as dificuldades de convívio pacífico entre essas pessoas, e como uma situação explosiva vai se construindo mesmo quando a intenção é apenas defender sua perspectiva perante o impasse. Também retrata de maneira forte a razão das pessoas simplesmente não desistirem e mudarem-se para outro lugar. Nosso lar é muitas vezes parte da nossa identidade, seja contendo nossos fortúnios do passado ou nossos anseios do futuro, mantê-lo é manter nossa dignidade, e esta pode ser a única coisa que nos mantém vivos. Kathy, em todo seu desespero sabe disso. Behrani, apesar de seu orgulho, sabe disso. Afinal, os dois começam o filme procurando alienar o mundo externo de suas verdadeiras condições. No inicio do filme Behrani afirma em seu discurso que sua intenção ao cortar as árvores que bloqueavam a sua visão da água em sua casa no Mar Cáspio era atingir o infinito com seus olhos. Mas assim como o infinito sempre estaria além de seu alcance, o resto do mundo parece inalcançável, parece tornar-se algo etéreo e distante, e um clima extremamente claustrofóbico se estabelece diante da inabilidade daquelas pessoas de alçar vôo. A fotografia de Roger Deakins é bastante eficaz em estabelecer esse clima de isolamento, reforçado através da névoa. ** Spoilers do Final ** Kathy e Behrani por fim acabam ocupando aquele mesmo espaço. E como na vida real, aquela divisão prova-se desastrosa apesar das boas intenções de ambos os lados. Behrani vê em ajudar Kathy uma espécie de benção, de redenção, mas é ele que acaba através de seu suicídio libertando-a de suas amarras com aquela casa, logo depois que ele mesmo descobre em seu amor por seu filho sua própria forma de libertação. Com as séries, eu aprendi que o carisma dos atores é um elemento crucial pois é a identificação do espectador com eles que possibilita a nossa imersão na estória, e os atores de Casa de Areia e Névoa, especialmente o trio central Kingsley, Connelly e Aghdashloo são brilhantes não apenas em construir aquelas personas tão tristes e sofridas, mas também em estabelecer uma conexão com o público. E essa conexão é crucial para que haja a catarse no espectador. O cinema muitas vezes é utilizado como instrumento de evasão psicológica, algumas vezes pode ter em nós efeitos nem sempre perceptíveis de atenuação de nossas próprias preocupações, outras serve apenas para nos entediar, muito. Seja qual foi sua reação frente a Casa de Areia e Névoa, a arte dificilmente é um desperdício de tempo, e eu espero ter exposto da melhor forma alguns bons argumentos de porque eu acho que Casa de Areia e Névoa vale a pena. Preste Atenção: Nas atuações, especialmente nos olhares. Os atores falam muito mais através dos olhos nesse filme. Principalmente os olhos azuis de Connelly. Eles nos tragam para dentro do filme. O que já se disse: “Triste e belo, este filme virou um clássico e entrou para a história do cinema.” - Adriana Werneck, Movie Guide. Porque Não Perder: É um filme intimista e arrebatador, que através do etéreo é capaz de nos contar muitas estórias e histórias. Curiosidades: Um pouco sobre o Irã. O Irã tem suas origens no Império Persa, fundado em 539 a C. por Ciro, o Grande. Os árabes conquistam a região em 642, e convertem seus habitantes ao islamismo. É adotado o alfabeto arábico, paralelamente ao idioma persa. O país sofre invasão dos turcos no século 6 e dos mongóis no século 8. Depois de recuperar sua independência, é governado por várias dinastias (Safávida, Afjar, Kajar). 1921 - O general Reza Khan dá um golpe de Estado e derruba o último sultão Kajar. 1926 - Reza adota o nome de Reza Shah Pahlevi e coroa-se xá. 1935 - Um decreto oficial muda o nome do país de Persa para Irã. 1963 - O xá promove a campanha modernizante ‘revolução branca’, que inclui a reforma agrária e o direito de voto às mulheres. 1978 - Cresce a oposição ao regime ditatorial do xá, devido à crise econômica e à ampla corrupção. As correntes esquerdistas, liberais e muçulmanas tradicionalistas se unem sob a liderança do aiatolá Ruhollah Khomeini, exilado na França. 1979 - O governo não consegue controlar a insurreição e o xá Reza Pahlevi foge do país. O poder é transferido ao primeiro- ministro Shapur Bakhtiar, e as Forças Armadas aderem aos revoltosos. Khomeini regressa ao Irã e assume o poder, com a renúncia de Bakhtiar. Em 1º de abril o país é oficialmente declarado uma república islâmica, cuja autoridade suprema é o chefe religioso Khomeini. Em novembro, um grupo de militantes islâmicos toma a Embaixada dos EUA em Teerã e faz 64 reféns norte- americanos. O governo iraquiano exige a extradição do xá, que estava nos EUA. Ele morre em julho, no Egito Fonte: http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/co nheca_pais/ira/cronologia.html Dados do DVD: Caixa plástica tradicional O vídeo é apresentado em formato anamórfico widescreen em 1.85:1 com excelente qualidade nas cenas de nevoeiro. Se for bem observador, porém, nas cenas com poucas luminosidade é possível ver indícios de compressão do vídeo mas nada que seja nocivo. O some Dolby Digital 5.1 com um ótimo efeito surround nos sons ambiente e enobrece mais ainda a excelente trilha sonora de James Horner. Extras Behind the Scenes – 15:53 – Entrevista e bastidores com todo o elenco e produção. Bem interessante. Depoimento do autor do livro onde todos mostram como estavam comprometidos com o projeto.. Teste de câmera de Shohreh Aghdashloo (06:06) – Mostra a versatilidade da atriz iraniana. Bem interessante. Photo Gallery – (05:39) – É interessante pois podemos escolher ver as fotos como Slide Show ou foto a foto. Na opção Slide Show podemos ouvir o diretor e atores comentando sobre o filme. Este é o belo trabalho feito pela colega Th@t@ para o filme do então estreante diretor ucraniano Vadim Perelman. O texto traz uma estrutura em primeira pessoa e interpretações interessantes sobre a nossa realidade, da maneira que foi espelhada no microcosmos pessimista que é Casa de Areia e Névoa. Em minha opinião, o filme tem altos e baixos. Kingsley e, principalmente, Aghdasloo estão extraordinários em seus papéis. Igualmente notável é o trabalho do cinematógrafo Roger Deakins, o preferido dos irmãos Joel e Ethan Cohen. Mas o roteiro apóia-se em soluções alternadamente óbvias e ilógicas, principalmente em relação à postura e atitudes de Lester, um personagem fraco, entregue a um ator igualmente fraco (Eldard). Pronunciem-se, colegas. Post semanal autorizado.Alexei2007-05-01 18:45:06
  21. Sonata de Outono, by Thico Filme: Sonata de Outono (Höstsonaten, França/ Alemanha Ocidental/ Suécia, 1978). Direção: Ingmar Bergman. Com Ingrid Bergman, Liv Ullmann, Lena Nyman, Halvar Björk, Erland Josephson. Sinopse: Uma pianista famosa (Ingrid Bergman) visita a filha (Liv Ullmann), no interior da Noruega, após longos anos de ausência. Enquanto a mãe é um artista de renome internacional, a filha é tímida e deprimida. Esse encontro tenso, marcado por lembranças do passado, revela uma relação repleta de rancor, ressentimentos e cobranças. O que eu acho : "Mãe e filha. Que mistura terrível de sentimentos, confusão e destruição." O outono é a estação do ano caracterizada pela queda das folhas e renovação da vegetação; é quando as árvores se preparam para ganhar nova "cara", novas folhas e frutos com a chegada da primavera. Mas enquanto não é chegada a estação das flores, as árvores permanecem por um bom tempo na direta situação de nudez aparente, onde podem ser vistas como são, sem enfeites, sem cores, sem máscaras. Foi esta a estação escolhida pelo cineasta sueco Ingmar Bergman para servir de pano de fundo para a história de duas mulheres que se preparam para deixar o que é aparentemente belo de lado e mergulharem na crueza do feio _ e que, na maior parte das vezes, é também mais verdadeiro. Sonata de Outono, a história do reencontro de mãe e filha após um hiato de 7 anos que acaba convergindo para uma dura batalha de verdades e ressentimentos, é mais um filme/estudo de Bergman sobre as relações do ser humano e a maneira como lidamos com nós mesmos. Para retratar a atmosfera outonal, Bergman mais uma vez contou com o primoroso trabalho de Sven Nykvist, criando na fotografia um aspecto impressionista, ainda ressaltado pelos figurinos e a direção de arte, baseados no vermelho, amarelo e verde, cores características da estação. Bergman assina aqui também os planos mais recorrentes de sua carreira pois Sonata de Outono, apesar do tom teatral e de se passar em basicamente um único ambiente, é cinema em sua forma mais pura, com os típicos closes fechados nos rostos das atrizes e as tomadas de perfil que desvendam um tanto mais do que aquele personagem é. Mas são os assuntos abordados que fazem do filme uma espécie de resumo da obra de Bergman, já que é possível encontrar aqui toda a gama de temas que sempre perturbaram e pontuaram a carreira do diretor e que fizeram de seus filmes uma eterna busca pela compreensão de si mesmo. Da infância traumática, matriz de todos os problemas da vida adulta, à citação da existência e importância de Deus, Bergman pontua o drama de mãe e filha como todos seus dilemas pessoais e que, por sua vez, acabam tornando a história ainda mais densa e verdadeira. É quando percebemos que estamos diante de uma narrativa baseada no sentimento do ser humano que clama por amor mas que acaba gerando _em si e nos outros_ uma dor quase irremediável, capaz de acompanhar por toda uma vida, perpetuada pelo medo, a culpa e a busca pelo perdão redentor. Porque Sonata de Outono é sobre o amor. Aquele amor que todos dizemos ter e que, orgulhosos, usamos em palavras fáceis e discursos calorosos, num auto-engano recorrente e gradativo. O amor que Charlotte (Ingrid Bergman) diz ter por sua filha Eva (Liv Ullmann), mas que soa tão supercifial como em todas as vezes em que ela necessita ser reafirmada diante de quem está ao seu redor. Quando sua filha diz estar feliz dando aulas na paróquia local, Charlotte cita o fato de ter feito uma turnê de sucesso em escolas americanas, tocando para milhares de alunos, ressaltando o clima de competição que estabelece com Eva. É essa necessidade que faz dela um personagem forte e fraco ao mesmo tempo, sempre buscando uma fuga mais simples. Mostrar o que sente seria difícil demais, portanto Charlotte acaba optando pela superficialidade de uma provável alegria, por fingir diante dos outros o que estaria passando dentro dela. Como quando reencontra sua filha vítima de uma doença degenerativa, Helena, e se mostra capaz de fazer promessas que claramente não poderá cumprir. E mesmo estando só em seu quarto, refletindo sobre o acontecimento, Charlotte se pega num paradoxal discurso de amor e raiva, ainda mais por Eva tê-la feito passar por tal constrangimento. Ela se vê incapaz de admitir um sentimento isento de raiva ou cobrança por sua filha e acaba atribuindo a Eva sua maneria errônea de agir. Sendo assim, para ela é justificável seu sentimento dúbio e acaba seguindo se enganando e tentando enganar os outros. Sorrisos são dados, olhares são lançados e palavras são caladas. Foi dessa maneira que Charlotte conduziu sua vida e "amou" as pessoas com quem convivia: Leonardo, seu amigo recém-falecido, foi digno de seus cuidados nos momentos finais mas não obteve uma lágrima sequer ao ser relembrado por ela; seu marido, complacente e compreensivo, recebeu palavras elogiosas em cada citação, mesmo que durante a vida em comum só tenha sido presenteado com ausência e traição; Helena foi abandonada quando pequena mas ganhou um relógio de pulso da mãe quando do reencontro _certamente para contar todas as horas que lhe prendem a uma vida morta; e Eva, que sempre amou e admirou incondicionalmente a mãe quando criança mesmo recebendo em troca a mais completa indiferença, foi agraciada com uma infância impossível e nela a não eminência do desenvolvimento. Foi em Eva que Charlotte mais despejou seu falso amor e dele fez nascer um ódio grandioso e assustador. Porque Sonata de Outono é sobre o ódio. O ódio que Charlotte enxerga nas palavras de Eva quando esta finalmente se vê livre para dizer tudo que manteve guardado durante toda a vida. O ódio que acusa mas que, como Eva cita em determinado momento, não pode ser diminuído diante do ódio da própria Charlotte. Aquele que a fez tomar tantas medidas com relação à filha e machucá-la quase que de maneira irreparável. A constatação de Eva de que seria na sua infelicidade que a mãe encontrava seu triunfo não deixa de ser verdadeira _ e abominável_ levando-se em conta toda a necessidade de Charlotte de se sobressair diante da filha. No momento em que Eva se dispõe a tocar um prelúdio de Chopin, admitindo de antemão uma certa deficiência de técnica, é impossível para Charlotte não viver um misto de sensações: ao observar a filha tocando, ela não esconde no olhar a decepção diante da não-perfeição; mas ao olhar diretamente para o rosto de Eva, Charlotte acaba demonstrando certa compaixão, ainda que isso não a esquive de citar todos os erros cometidos por Eva em sua interpretação, mesmo que esteja ciente de ser a responsável por causar uma imensa dor na filha. Porque Sonata de Outono é sobre a dor. É sobre um prelúdio de Chopin, interpretado de forma fria e racional por Charlotte, capaz de abdicar das sensações diante da busca pela perfeição. Ela ensina para Eva: "Há dor mas sem parecer. Depois um breve alívio. Mas ele some de repente, e a dor continua a mesma." E ao começar a dedilhar no piano tem sobre intensa observação o olhar de Eva, atenta à técnica que a mãe esbanja e constatando assim sua aparente derrota em mais uma batalha emocional. Mas quando o olhar de Eva é direcionado ao rosto da mãe (exatamente como aconteceu na cena anterior, só que em posições opostas), o que percebemos é toda a amargura reprimida por ela e que acabou gerando uma espécie de medo da figura da mãe. Porque Sonata de Outono é sobre o medo. O medo que Eva tinha da mãe quando criança e que a fazia não dizer nada, mesmo quando desejava intensamente. E vindo desse medo, a incapacidade de comunicação, a dificuldade de expressão e a aceitação do que lhe era dado. Por conta disso, Eva acabou se tornando uma mulher incapaz de questionar muito as coisas que lhe aconteciam, sendo muito mais espectadora da própria vida do que protagonista da mesma. E Bergman acaba dando a real dimensão dessa situação nos flashbacks que são inseridos ao longo do embate de Eva e Charlotte, quando somos transportados para a infância de Eva (volto a dizer, a origem de todos os problemas emocionais do ser humano, como em todo filme de Bergman) mas não participamos dos acontecimentos ativamente; o que é dito não pode ser ouvido e acabamos mantendo, através da câmera sempre parada e em plano aberto, uma distância considerável do que está sendo retratado. Como se aquilo realmente só pudesse ser visto e não reparado. E assim, numa bola de neve de impossibilidades, os personagens vão se tornando cada vez mais incapazes de se comunicarem e sentirem. O marido de Eva não sabe como dizer para a mulher que a ama, Charlotte diz que sempre necessitou do carinho da filha mas que encarava o amor desta como exigências, e Helena assume o papel alegórico da mais completa impossibilidade de comunicação, ficando isolada à dependência da irmã para estabelecer qualquer contato com a mãe. E sendo a doença de Helena, mais que uma metáfora da destruição da relação familiar, a culpa incutida no futuro de Charlotte. Porque Sonata de Outono é sobre a culpa. A culpa do ser humano em não perceber o que está ao seu redor, de deixar passar o que não tem mais retorno e que acaba abrindo caminho para uma único desfecho aparente: a solidão. A negligênica de Charlotte com relação à família em detrimento da carreira, a levou a uma vida de sucesso e riquezas. Mas nem ela é capaz de negar que sente falta de um lar quando está longe, ainda que não saiba o que poderia buscar lá. Talvez por Charlotte nunca ter tido um lar verdadeiro, seja ele físico ou emocional. E a dor perene nas costas que acompanha a pianista acaba sendo reflexo da própria culpa pelo abandono de si e dos outros. A perda do que lhe poderia ser caro desperta em Charlotte uma necessidade de redenção, a tentativa de algo que lhe isente da culpa eterna. E nesse âmbito, a perda dela poderia ser relativizada diante da perda de Eva: o próprio filho, morto num afogamento. Mas Eva se mantém ligada ao filho (o que não deixa de ser interessante nessa fase de Bergman, mesmo depois de ele ter negado a existência de Deus, em Luz de Inverno) e acredita que ele continua vivo em algum tipo de plano paralelo. Em determinado momento ela diz para a mãe que: "É medo e presunção acreditar em limites. Não existem limites, nem para os pensamentos, nem para os sentimentos." Resta a Charlotte realmente acreditar na existência de uma mudança que a possibilite o perdão pelos erros cometidos. Porque Sonata de Outono é sobre o perdão. Ou sobre a não possibilidade dele, já que certas coisas não tem mais volta e algumas mágoas são eternas. A vida de Eva ou de Helena não poderia mais ser mudada por conta de um arrependimento da mãe, ainda que este fosse verdadeiro. E no caso de Charlotte, a necessidade de ser perdoada seria o que lhe restava para se manter ainda próxima de uma certa humanidade, mas até que ponto ela realmente estaria disposta a mudar? Todas as revelações e verdades são culminadas na mais dura fala de todo o longa, quando Eva diz á mãe sobre o que aconteceu entre Helena e Leonardo e o estado daquela diante da partida deste, ocasionada por culpa de Charlotte e, obrigada a constatar a dura realidade, fulmina: "Não há desculpas. Só há uma verdade e uma mentira. Não pode haver perdão." No pragmatismo aparente se encerraria mais uma obra-prima de Ingmar Bergman, mas cabe lembrar que o filme é sobre o outono, e que a estação tem fim. Com a queda das folhas, as árvores acabam sendo reveladas em sua essência mais crua e feia. Mas ainda que as folhas caídas não possam mais retomar vida nas árvores e fiquem perdidas no chão, em algum momento a primavera virá e com ela o nascimento de novas folhas e novas possibilidades de cores. Porque Sonata de Outono é sobre a esperança. Preste atenção: Em toda a intensidade da seqüência de execução do prelúdio de Chopin, uma das mais belas _e fortes_ cenas de toda a história do cinema. Amparado pelas brilhantes interpretações de Liv Ullmann e Ingrid Bergman, Ingmar Bergman permite que suas atrizes expressem com uma economia assustadora de gestos, faciais ou corporais, todo o turbilhão de sentimentos que se passa com aquelas mulheres. E fora que Chopin é Chopin... Porque não perder: Primeiro e único filme de Ingrid Bergman com seu compatriota Ingmar Bergman; a melhor interpretação desta que foi uma das maiores estrelas da história do cinema; uma das maiores interpretações da maior atriz da história do cinema (na minha opinião), Liv Ullmann; o melhor (e olha que afirmar isso é muito complicado) filme do maior diretor da história do cinema...é muito "melhor da história" para perder, não concorda? O que já se disse antes: "Bergman descasca este Sonata de Outono aos poucos, revelando o que existe de mais cru nos relacionamentos após um início aparentemente normal, onde mãe e filha reencontram-se alegres. É esta análise gradual que pega o espectador pela garganta (...), um estudo fascinante sobre gente, com um final lógico e cruel." (Kléber Mendonça Filho- Cinemascópio) Dados do DVD : Gênero : Drama Faixa Etária: 14 anos Legenda: Português Idioma: Sueco Duração: 93 minutos Extras: Trailer de Cinema, Vida e Obra de Ingmar Bergman, Galeria de Fotos e Pôsteres, Menus Interativos, Seleção de Cenas O Thico, um apaixonado pelo cinema (e exímio conhecedor do assunto) escreve sobre um belíssimo filme de um dos seus diretores preferidos, Ingmar Bergman, com muita poesia e propriedade. Sonata de Outono é um dos maiores exemplos cinematográficos de verticalização de idéias e sentimentos que eu já testemunhei; cruel, trágico, intenso e muito bonito, tendo nas interpretações das protagonistas e no trabalho de seu cinematógrafo (Sven Nykvist, um dos mais talentosos que o mundo já conheceu) seus pontos altos. Esse é um daqueles filmes que não se pode perder de jeito nenhum. E a resenha faz jus à obra, em todos os aspectos. Post semanal autorizado.
  22. Voltando a Moulin Rouge, não sei o quanto meus sentimentos acerca da obra do Toulouse-Lautrec interferem em minha apreciação negativa do filme, mas é algo a se pensar. Lautrec é meu pintor preferido. Foi um sujeito sensacional, que conseguia captar a vida ao seu redor como poucos fizeram. Seus quadros cheiram a sífilis; são repletos daquele falsa sensação de alegria que permeia a boemia desregrada, como um escudo para a tristeza interior. Em suas telas, enquanto os corpos dançam e seduzem uns aos outros, os rostos trazem uma melancolia profunda, que só a ausência de um sentido na vida causa. Mesmo sem sentido, a vida pulsa, real, nos quadros do pintor. Nos frames de Luhrmann, ela me parece tão realista quanto bonecos de um parque de diversões. Bal au Moulin Rouge (1890) Líder da Semana no BBBCeC Alexei2007-04-22 19:35:31
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