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Cineclube em Cena


Nacka
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Foras, que crítica bem escrita e estruturada. Longa, mas não

prolixa. E algumas analogias como a da mão de obra imigrante e a de Jesus e

Deus foram brilhantes. Sem falar que algumas partes foram bastante elucidativas

pra min, já que eu não revi o filme.

 

 

 

E como curiosidade: a cena em

que Vera quebra os bonecos da Grace foi uma das poucas cenas

do cinema que me fizeram chorar, provavelmente não precisaria acrescentar que

nada me deu mais satisfação do que quando a Grace dá aquela ordem no final, se

aproveitando do fato de que Vera chora por qualquer coisa. É incrível como Von

Trier nos manipula a apoiar a crueldade de Grace, da mesma forma que Tom apóia a

crueldade de seus vizinhos, invertendo os papéis já que durante toda a película

inconscientemente nos prendemos à vitima e não aos executores, usando de tal

posição para justificar nossos sentimentos.

 

 

Th@t@_patty2007-01-21 23:15:55

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1) Crítica simplesmente SUBLIME... A minha de Cidadão Kane vai comer poeira diante desta obra cuidadosa do Foras' date=' com certeza...

 

2) E quero ver o endemoniado que terá capacidade de criticar negativamente o filme depois de ter lido a crítica. smiley14
[/quote']

1) Não só a sua, Dook. A minha também não vai nem chegar próximo a dele.

 

2) Não tem como. O Forasta foi extremamente didático, deixou tudo ás claras na sua resenha (que, na minha opiniao, já é forte candidata ao Pablito!!!).

 

Sobre o filme, já comentaram, mas não custa nada ressaltar: Diante de todas as atrocidades que fizeram a Grace durante todo o filme, não tem como não concordar com ela quando o seu pai lhe dá os "plenos poderes" de decidir o destino daquela cidade (que não é nada mais nada memos do que a personificação de tudo de ruim e sórdido em relação á raça humana). O fato de não haver cenários, como o Forasta disse, permite que compartilhemos ainda mais da dor de Grace (ainda mais pelo fato de vermos todos os habitantes impassíveis, travestivos de uma moralidade que eles não possuíam). COm isso, não nego que, no momento da execução das pessoas daquela cidade, sorri de satisfação....

silva2007-01-22 10:43:38

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 Acho "Dogville" um filme difícil, mas não menos espetacular. Foras não ficou devendo um "a" em termos de excelência. Parabéns!! A melhor crítica que li sobre esse filme até hoje!! 10

 

PS 1: Acho que vou até desistir de escrever sobre "Touro Indomável"... Já estou sentindo vergonha por antecedência pelo texto que terei que escrever... 08 06 Não vai chegar nem aos pés!  

 

 
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Filme: Dogville (2003)' date=' de Lars von Trier<?:namespace prefix = o ns = "urn:schemas-microsoft-com:office:office" /><?:NAMESPACE PREFIX = O />

 

Sinopse: Fugindo de gângsters, uma bela mulher recebe a ajuda da população de uma pequena cidade para conseguir se esconder. Dirigido por Lars Von Trier (Dançando no Escuro) e com Nicole Kidman, James Caan, Chloë Sevigny e Lauren Bacall no elenco.

 

Prólogo

(que nos apresenta à história e seus personagens)

 

Lars von Trier, diretor dinamarquês e um dos fundadores do Manifesto Dogma 95 (http://pt.wikipedia.org/wiki/Dogma_95), nunca deveria ter sido provocado. Aqueles que o fizeram, lançaram sobre o cinema a sombra de uma fumaça densa e suja, materialização física do ódio de von Trier que, como uma praga divina, recairia sobre suas cabeças, amaldiçoando a “terra das oportunidades” com a mais terrível e pervertida crítica que jamais havia sofrido. Em Dançando no Escuro (imediatamente anterior a Dogville, sobre uma imigrante que vive o inferno na terra ianque), acusaram-no de incoerência e preconceito xenófobo ao realizar um filme sobre um lugar no qual nunca esteve, como se fosse necessário conhecer a matriz que imprimiu o mundo à sua imagem e semelhança. Motivado pelos ataques, portanto, o dinamarquês decide que o melhor modo de revidar é no ringue, iniciando assim uma trilogia de pretensões ambiciosas, batizada de “USA: The land of opportunities”, composta por Dogville, Manderlay e Washington.

 

Dogville é uma cidadela interiorana e quase auto-suficiente que recheia as montanhas rochosas dos Estados Unidos na década negra de 30, engolida pela Grande Recessão. Nela, vive pouco mais de uma dezena de pessoas dos mais variados tipos, incumbidas das mais comuns e variadas funções. Tudo corria normalmente no lugarejo até que Tom Edison Jr. (Paul Bettany), aspirante a escritor e filósofo, responsável pela organização social e porta-voz de Dogville, ouve tiros no vale e encontra Grace (Nicole Kidman), uma doce e indefesa fugitiva da máfia. Ele a coloca para dentro da cidade e convence seus pacatos moradores a abrigá-la, em troca de algumas tarefas a princípio supérfluas.

 

A primeira coisa que chama a atenção em Dogville é, obviamente, seu cenário. O filme foi todo rodado em um galpão de mil e seiscentos metros quadrados, na gélida e nórdica Suécia. Apesar de parecer que von Trier está, meramente, seguindo à risca os mandamentos cunhados por ele em Copenhagen , a ausência absoluta de requintes tem razões metafóricas poderosas para acontecer. Adornos como jardins e pés de groselha são representados por rudimentares rabiscos de giz, tal como o cachorro Moisés. Não existem portas ou paredes na meia dúzia de casas da Elm Street, e não há horizontes em Dogville, apenas dois fundos de cores diferentes, separando o dia da noite. No entanto, ouvimos os latidos de Moisés e os rangidos das portas imaginárias que vemos os moradores abrindo, até que passamos também, em um processo fantástico de adaptação que não dura mais de meia hora, a ver as montanhas e vales que cercam a vila, a sentir a profundidade e o isolamento do lugar, a enxergar as fissuras nas paredes das casas e a textura dos caminhos de terra (os que eu vi eram de terra). É como se o diretor nos desse o esqueleto de Dogville para que a construíssemos em nossas mentes, como se funcionasse através de uma sobreposição de imagens, que se completa ao encontrar as peças que faltavam quando atravessa retinas diferentes. Em certo momento, Tom conversa com Grace sobre seu livro e não sabe com que nome batizará a cidade fictícia na qual é ambientado. Grace sugere “Dogville”, e Tom responde que isso dissiparia a atmosfera universal da estória. Situando seu povoado nos Estados Unidos e o montando de forma que funcione através de olhos individuais, Lars von Trier eleva ao conceito máximo a frase que ilustra a capa do filme, “uma pacata cidade não muito longe daqui”. Dogville é, até o fim, um resumo claro e pessimista do mundo.

 

-Capítulo 1-

(a cidade dos sonhos...)

 

Mesmo que Trier insista em editar seu filme a partir de “nove capítulos e um prólogo”, o que remete ao tom teatral que o acompanha, ele pode muito bem ser quebrado em três, assim como a maioria dos roteiros e suas trilogias de “plot-points”. Grace chega à cidade, Grace é explorada, Grace se vinga. No tal prólogo, muito mais que ao restante dos personagens, o sarcasmo do narrador nos apresenta a Tom e seus anseios, seus métodos de persuasão através de “exemplos”. Tom quer provar ao mundo suas teorias, começando por Dogville, é claro. Segundo ele, há uma dificuldade muito grande em “aceitar”, que “o país não iria tão mal se houvesse mais aceitação”, e precisa de um exemplo forte e concreto para provar sua pseudo-filosofia. É onde entra Grace. Tom vê em Grace sua oportunidade, fazendo com que os habitantes daquela cidadezinha simpática a abriguem, dando a ela duas semanas de “testes”, para que possam depositar confiança na garota.

 

E ela se encanta por Dogville. Encontra na cidade tudo que procurava quando fugiu, e passa a vê-la como a mais perfeita representação do paraíso bucólico, residente talvez nos seus sonhos e fantasias mais antigos, na infância que desejou, mas que nunca alcançou (como é revelado no ato final). “Dizer que Dogville era bonita, era, ao menos, original”, aponta o narrador, com uma sempre presente carga de ironia. Pois se Grace a havia achado bonita, foi porque a cidade, assim como para seus espectadores, atravessara um filtro óptico, que completou a crueza do que realmente era com os desejos e frustrações do que Grace queria que ela fosse. A partir daí, a forasteira dócil e simpática passa a desejar o que perdera, estando disposta a tudo para ajudar seus sofridos habitantes até, quem sabe, tornar-se um deles. Ela, que conheceu apenas a maldade e a arrogância vivendo entre os gângsteres (“uma infância triste, um homicídio”), refugia-se em Dogville em busca do que nunca teve. E além de querer encontrar, ela, acima de tudo, quer acreditar que vai encontrar.

 

O preço pelo abrigo é trabalho braçal. “Dogville lhe deu duas semanas, o que dará a ela?”, indaga Tom, na noite em que apresenta a Grace o lugar que ama. O problema é que, aparentemente, não havia nada para ser feito. Grace vai a todas as casas, fala com todas as pessoas e, no entanto, não consegue nenhuma ocupação. O trabalho seria o condutor que aproximaria Grace de Dogville, seria o catalisador da confiança, ela precisava disso. Com a intervenção de Tom, porém, pouco a pouco vão surgindo coisas nas quais ela poderá se tornar útil. Grace passa a receber um pequeno salário e, “fazendo tarefas que não precisavam ser feitas”, conversando com um cego muito vaidoso, ajudando Vera com seus sete filhos, Sra. Henson com os copos, Ben com a garagem, o pai de Tom com os remédios, Chuck com o pomar, Bill com os cálculos, Martha com o piano, Olívia com a inválida June, e Ma Ginger com os arbustos de groselha, ela passa a se integrar e conhecer os moradores, sentindo-se parte daquilo e, claro, encantando-se ainda mais. Gradativamente, os pobres citadinos de Dogville percebem o quão maravilhoso é ter alguém fazendo o que não precisava ser feito, e o supérfluo torna-se necessário, fazendo com que a votação na igreja após duas semanas tome resultado óbvio.

 

-Capítulo 2-

(... wake up, Grace)

 

Quando a primavera se deita sobre Dogville, a polícia vai à cidade pela primeira vez, talvez em toda sua existência, trazendo consigo um cartaz. Nele, a foto de Grace é acompanhada pela palavra “desaparecida”, e os moradores acabam se assustando, o que resulta em uma nova reunião. A Sra. Henson se preocupa com a última frase do policial, dizendo que se a vissem deveriam ligar para as autoridades, e que isso “é a lei”. Aparentemente, a idéia de infligir a lei incomodava aquelas pessoas, “que nunca se metiam em nada”. O simples fato de estarem fazendo algo considerado “moralmente questionável” fazia com que a possibilidade de entregar alguém que já conheciam há semanas fosse digna de avaliação, mesmo que o motivo de sua fuga permanecesse oculto.

 

Uma (talvez inevitável) paixão envolve Tom e Grace, agora unidos por teoricamente bem mais que pena e gratidão. Quando chega o feriado e a festa de 4 de Julho, no entanto, Tom perde a primeira chance de tornar seus sentimentos públicos, e ao mesmo tempo, paradoxalmente, revela pela primeira vez sua falta de coragem. Na mesa de jantar, noite da festa, enquanto Dogville cantava orgulhosa o hino dos Estados Unidos da América, Grace já era tida como o que seu nome significa, é considerada enfim o presente do qual Tom falava no início. Logo após Jack Mckay (o cego ante-citado) fazer um discurso emocionado sobre a alegria de todos ao terem Grace por perto, a polícia visita a cidade pela segunda vez. Com outro cartaz. Enquanto a fugitiva se esconde na mina, como combinado, o medo de todos diante daquela autoridade começa a pesar em Dogville, como se evaporasse de cada um, formando uma camada espessa que levitava sobre a cidade, bloqueando a luz do sol e asfixiando os arbustos de groselha. “A palavra ‘perigosa’, no cartaz, assustou a Sra. Henson”, diz Tom a Grace. O policial disse que a moça loira era procurada por assaltos a banco, que haviam acontecido há duas semanas atrás. Mesmo com um álibi em mãos, com grande padrão de confiança conquistado, a palavra “perigosa” havia assustado a Sra. Henson. Neste momento, os moradores da vila revelam uma inviolável dependência e entrega cega às garras do sistema. Não importava o quanto Grace se esforçara, não importava se o que encontrara em Dogville eram amigos, eles estariam dispostos primeiro ao Estado, depois a ela.

 

As coisas mudaram no dia seguinte. Representando seus vizinhos, Tom impõe a Grace que agora Dogville corre mais perigo, e que precisa de mais em troca. E apesar do que Tom sentia por Grace, é ele quem propõe a desgastante nova jornada de trabalho. Mesmo que nada fosse verdade, Vera, Ma Ginger, Chuck e os outros esperavam o momento em que usariam seu presente à vontade. Pois agora, tinham um motivo justificado pra isso, e não queriam a verdade caso esta não lhes conviesse. As tarefas de Grace se intensificaram, mas seu salário (com o qual comprava os bonecos porcelânicos de gosto duvidoso), não. Aliás, pelo contrário.

 

Agora, Grace precisa passar nas casas de cada um duas vezes ao dia, o que lhe dá meia hora de trabalho por vez em cada casa. O dia alucinante de Grace é acompanhado com muita inventividade por von Trier que, em dado momento, sob uma vista aérea da cidade, desenha na tela as casas de um relógio e transforma a sombra da torre da igreja em um ponteiro. Quando Martha toca o sino outra vez, avisando Grace que mais um turno de trinta minutos acabara, ela corre para não chegar atrasada ao pomar de Chuck e pega um atalho pelo caminho de terra través dos canteiros de groselha de Ma Ginger, que a repreende. Para Ma, Grace não podia usar a passagem. Este momento é crucial e revela mais uma das garras do filme contra, não só os Estados Unidos, mas todo e qualquer representante do primeiro mundo procurado por imigrantes. Boa parte do império ianque se apóia com força sobre a imigração ilegal, que no caso, é toda representada por Grace. Grace até podia ser boa para ajudar a todos nas mais diversas funções, a trabalhar quase de graça por mero abrigo, mas não era o bastante para que pudesse passar por entre as groselhas de Ma Ginger. Apesar de ajudar a construir a cidade, Grace apenas poderia ficar grata por Dogville recebê-la e abrigá-la. Ela seria eternamente um peão, uma operária, uma base de descarga, um fio-terra. Tudo, menos um deles. Grace viveria para Dogville, mas jamais teria Dogville. Um quartinho num canto, assim como Moisés, era o máximo que conseguiria. Mesmo cuidando diariamente dos arbustos de groselha, não lhe era permitido usar o caminho entre eles.

 

Após o estafante dia de trabalho atravessado por Grace, Tom a visita, e algo ligeiramente estranho acontece. Durante a conversa inteira, ele parece justificar todas as condenáveis ações dos seus vizinhos.

 

-Capítulo 3-

(primeiro estupro)

 

É irônico e até previsível que a queda das faces em Dogville comece pelas crianças. Jason, um dos sete filhos de Vera e Chuck, é o primeiro entre todos a chantagiar Grace. Revelando uma predileção excêntrica pelo masoquismo, ele pede a Grace que bata nele. No ato final, ela talvez até tenha pensado em Jason antes de fazer o que fez, como parte do futuro da cidade, como o espinho que surgiria nas groselhas com a aurora da próxima primavera. Jason seria um produto de Dogville, provavelmente o máximo que pudesse oferecer ao mundo. Caso a cidade tivesse continuidade, um Jason manipulador e masoquista seria deixado de presente a alguém que passasse por ali anos mais tarde.

 

Basicamente, há dois estupros significativos em Dogville. Um cometido por Chuck, e outro, por Ben. Chuck não gostava da presença de Grace até que, em sua companhia junto ao pomar, seu desejo sexual é despertado. Em outra visita da polícia, para colar outro cartaz, Chuck vê a chance para conseguir o que quer. Usando os policiais e o medo de Grace por ser descoberta, ele a chantageia ao silêncio e a estupra em sua casa. Lembrem que falei, no início, das razões metafóricas poderosas que envolveram a decisão de von Trier pela ausência de paredes. Enquanto Grace é violentada, através das paredes inexistentes é possível ver com clareza os demais habitantes da cidade. Distraídos, displicentes, indiferentes. E acima de tudo, é possível ver Tom, o homem que a ama, há poucos metros de distância.

O espectador aqui é abençoado com a onipresença divina, apenas ele vê e sente o que está acontecendo. É quando a câmera vai para a Elm Street, e percebemos que as aparências começam a despencar. Diferentemente de alguém que estivesse passando pelo lugar, conseguimos enxergar através das paredes, através da face dócil e amena daquela cidadezinha pequena onde todos se conhecem, e nos defrontamos com o horror. Intrínseco. Somos usados como parte da trama para que a passividade conveniente e o pacifismo aparente de Dogville entrem em choque com o absurdo sofrido por Grace. Daria para imaginar a obra de Trier encadernada como um livro, mas não há possibilidade de reprodução do que a cena acima representa. Utilizando seu narrador e suas imagens, von Trier acaba criando uma poesia sutil entre literatura e cinema. Faz com que o sarcasmo do narrador seja tão incomparável quanto o choque que o primeiro estupro produz. Somos apresentados ao funcionamento de duas linguagens diferentes, e como Dogville perderia grande parte da sua mágica caso fossem separadas.

 

Logo após o estupro, quando Chuck bate a porta e encontra Tom do lado de fora, este sem dúvida sabe o que aconteceu. Era inteligente e a obviedade do que acabara de ocorrer lhe saltava aos olhos, ainda mais com a resposta que ouvira de Chuck ao perguntar se Grace estava ocupada. No entanto, deixava sua covardia quase contorná-lo e destacá-lo entre as montanhas rochosas que tragavam a cidade. Ele pára em frente à porta, e enquanto Grace chora dentro da casa, ele faz um gesto como se fosse entrar, mas desiste. Tom teme o que vá encontrar e a responsabilidade que teria que assumir, assim, prefere permanecer admitindo uma falsa ignorância, apenas para preservar seu ócio e indiferença.

 

A esta altura, Chuck violentava Grace todos os dias no pomar. Vera, esposa de Chuck, ao saber da “saliência” de Grace para com seu marido, resolve visitá-la à noite. Um por um, Vera estraçalha no chão os bonecos de porcelana que Grace havia comprado, através de muito trabalho oferecido à cidade. Além que quebrá-los, ela tortura Grace, dizendo que só pára se ela contiver suas lágrimas. Logo no início do filme, quando Tom apresenta Dogville a Grace, os dois param em frente à única loja do lugar e discutem a aparência dos tais bonecos. Grace, que até pouco tempo teria dito que eram horríveis, agora os considera bonitos. Os bonecos funcionam como o termômetro do que Dogville é para Grace. Na noite em que foi apresentada, ela estava rodeada por todos os lados de uma esperança inocente, de um altruísmo verdadeiro combinado com as segundas intenções de se tornar, também, parte daquele lugar. Após semanas de trabalho e salários conquistados, Grace vai comprando um a um os sete bonecos, convicta de que está conquistando, a partir de cada um deles, um pedacinho a mais de Dogville e seus habitantes. Mas quando Vera vai a sua “casa”, depois que o primeiro estupro acontece, e quebra os bonecos, as esperanças de Grace também são quebradas. Seus sonhos de constituir uma vida que sempre desejou e de ser Dogville morrem estilhaçados. Desiludida, Grace decide fugir, e Tom, ajudá-la. Ben, que saía de manhã cedo no caminhão e descia a Georgetown com as maçãs, parece a escolha perfeita no plano de Tom para evadir Grace e dar-lhe a “liberdade”. É quando o segundo estupro acontece.

 

 

-Capítulo 4-

(segundo estupro)

 

Grace deita na parte de trás do caminhão, junto às maçãs, coberta por uma lona que, através da câmera de Lars von Trier, torna-se transparente. Ben pára o caminhão, diz para Grace não fazer barulho porque estavam na frente de uma igreja, e a estupra. Apesar de o ato em si não se diferenciar em nada do praticado por Chuck, os elementos e as circunstâncias o tornam tão cruel, simbólico e único quanto. Não me pareceu coincidência alguma que Ben tenha parado exatamente em frente à igreja, concebendo a própria materialização do barroco, onde o imaculado se encontra com o profano, paradoxo cujo sentido se amplifica no ato final. Também é notória a hipocrisia clássica que verte do momento. Enquanto Ben se sentia envergonhado por ir a um prostíbulo uma vez por mês, mas ia, não se orgulhava do que estava fazendo. No entanto, fazia, e com prazer. Porém, para amenizar qualquer culpa que possa vir a sentir, Ben precisa de um motivo, precisa também de sua justificativa. Ao encurralar Grace, ele diz que precisa cobrar um adicional para transportar “cargas perigosas”. Sabendo que ela não tinha nada, faz questão de receber da pior forma possível.

 

Por fim, a lona transparente nos traz de volta àquela onisciência supracitada, quando ganhamos asas e olhos de deuses, voando sobre o caminhão e apenas observando o que acontece. O que incomoda na cena, o que a torna tão dura e fria, é a opção de von Trier por nos colocar em frente a um estupro, onde não vemos partes do corpo à mostra nem nada que remeta à sexualidade, apenas a expressão sem vida no rosto de Grace. Não sentimos Ben, de costas, sentimos Grace. Parte de um processo pelo qual nos compadecemos gradativamente com a dor da personagem, e começamos a ter idéias das quais, certamente, não nos orgulharíamos. Ao menos não antes do ato final. Depois do estupro, ela adormece tranqüila, pensando já estar longe de Dogville e seus habitantes. A (também aparente) fragilidade de Grace é capaz de desenhar aqui a cena mais bonita de todo o filme, tornando-se inclusive seu rosto em cartazes e locadoras.

 

Traída por Ben (como se já não bastasse) ela é levada de volta à vila e julgada por, além da fuga, um crime que não cometeu: o roubo do dinheiro do pai de Tom. Quem pegou o dinheiro, na verdade, fora o próprio Tom, confessando a Grace que ajudou a convencer os habitantes de Dogville sobre sua injusta culpa, exercendo sua vocação à manipulação. Tom havia pegado o dinheiro, mas não iria a lugar algum, pois apesar de pregar contra o sistema, dependia dele. Tom não podia ignorar a pensão que seu pai lhe dava. Apesar de tudo, nosso iluminista se justifica com Grace, e muito bem.

 

-Capítulo 5-

(a coleira)

 

A esta altura, Dogville depende de Grace. As tarefas que não precisavam ser feitas, através do condicionamento, tornam-se essenciais. Bill Henson, cuja habilidade em engenharia evoluiu unicamente a partir dos auxílios de Grace, constrói agora uma espécie de coleira que a prende à cidade. Contudo, superando seus limites, Bill concebe o aparelho com tal inventividade que permite a Grace realizar suas tarefas, apesar do cárcere. É clara a intenção de Lars von Trier ao nos fazer olhar Grace rastejando de lá pra cá, arrastando uma roda de ferro e com um sino no pescoço, como se fosse uma vaca ou algum animal criado para servir. Dogville tem, agora, mais uma razão para explorar a fugitiva e, conseqüentemente, encontrando na vingança falsa um pretexto para abusar dela de todas as maneiras. Grace conhece a fúria e a crueldade debaixo daquela atmosfera nostálgic. Os homens da cidade, à exceção de Tom, passam a visitá-la periodicamente. Os estupros se seguem incontáveis, punindo a garota através de pecados fabricados.

 

Preocupado com a situação, Tom resolve que é hora de convocar uma reunião para que Grace denuncie cada um de seus agressores face a face. “Mentiras, mentiras deslavadas!”, esbravejam eles, quando Grace os confronta com a verdade. Suas acusações acabam servindo como estopim para uma reação defensiva da cidade: entregar Grace. Na noite da reunião, depois que ela é mandada para sua “casa”, Tom sai e vai até lá. Declarando seu amor por Grace, ele tenta possuí-la argumentando que era o único em Dogville sem ainda tê-la tocado. Apesar de amá-la e de “planejar a seu favor”, Tom, voltado para seus interesses (no momento, comuns aos do resto da cidade), tenta também explorar Grace. No entanto, ela também o confronta com a verdade por um instante. Diz que pode fazer como os outros e ameaçá-la também. Ele enrijece. O terceiro estupro explícito não ocorre. Tom sai da casa de Grace, pensa, pega um número de telefone e volta para a reunião.

 

No dia seguinte, surpreendentemente, Grace dorme até meio-dia sem ser incomodada. Quando sai, é tratada com uma cordialidade absurda pelos cidadãos de Dogville, e descobre que ganhou dois dias de folga. Tom teve a idéia, obviamente, e confessa a Grace que se inspirou com o acontecido na noite anterior, podendo assim finalmente iniciar seu livro. Parecia que Tom, enfim, havia encontrado o exemplo que queria, e nada mais o impedia para que começasse a cavar nas almas humanas, “bem onde criam bolhas”. Apesar de tudo, o jovem filósofo parecia estar obtendo êxito, parecia enfim ter provado a Dogville que ele tinha razão. Para ele, tudo não passa de um experimento egoísta, e, portanto, não precisando mais de Grace, ele a devolve, e Dogville também. Alimentada pelas acusações de Grace na reunião e pelo forte poder de persuasão de Tom Edison Jr.

 

-Capítulo 6-

(ELES visitam Dogville)

 

O ato final, permeado pela conversa no carro e a chacina, concentra os minutos e palavras mais importantes desta obra-prima de Lars von Trier. Depois de descobrirmos que Grace é filha de um gângster poderoso e que ele só está ali a fim de levá-la para casa, um diálogo recheado de metáforas e referências é travado. A primeira coisa que se sobressai é a personificação clara de Cristo e Deus em Grace e seu pai (cujo nome nunca é revelado, interpretado por James Caan) quando, para tentar trazê-la de volta, lhe oferece parte de seu “poder”. O que se segue vem a confirmar esta visão, como quando Grace diz “não sou eu quem está julgando, pai, você está”, e ele a responde “você não julga ninguém porque tem pena deles”. A esta altura, já presenciamos uma espécie de debate divino para decidir o destino de meros mortais. Grace tenta justificar a inocência de seus agressores, o que pode ser traduzido como um “perdoai-lhes, eles não sabem o que fazem!”, seguido de uma argumentação promotorial protagonizada por seu pai:

 

- Estupradores e assassinos podem ser vítimas pra você, mas pra mim são cachorros.

- Os cães obedecem à sua própria natureza, por que não merecem perdão?

- Podemos ensinar muitas coisas úteis para os cães, mas NÃO se lhes perdoarmos sempre que obedecem à sua natureza.

 

Segundo o pai de Grace, portanto, o livre-arbítrio é passaporte válido para um julgamento que pode levar os seres humanos tanto à punição, quanto à redenção. Grace, encarnando o messias que desce a Dogville para salvar suas almas, não acredita nisso, e é onde entra a arrogância da qual ela e seu pai tanto falam. Perdoando toda e qualquer ação, Grace estaria lhes negando o julgamento garantido através do livre-arbítrio. “Todo ser humano deve responder pelos seus atos, mas você nem dá a eles esta chance”. O braço misericordioso de Grace é falso, e ela ergue-se sobre ele permanecendo acima do resto, tomando para si o conceito de “perdoar é divino”. “Você perdoa às pessoas com desculpas que nunca permitiria dar a si mesma”, diz-lhe seu pai.

 

Depois que Grace repete várias vezes suas intenções de permanecer na cidade, seu pai pede que saia, pense um pouco, porque ele tem certeza de que ela mudará de idéia. Dando uma volta na Elm Street, decorada agora por sombras com metralhadoras e os rostos pálidos de seus habitantes, a compadecida e não mais fugitiva Grace coloca-se no lugar da carne fraca e pergunta a si mesma se, sinceramente, não teria feito o mesmo caso morasse em uma daquelas casas.

 

-Capítulo 7-

(ela muda de idéia)

 

No entanto, uma lua cheia e simétrica se acende no céu de Dogville, derramando sobre ela uma luz ácida e áspera. Finalmente, Grace vê a cidadezinha sem as paredes e sem as portas. Vê reveladas as feras por baixo dos homens e assiste aquela luz que “penetra nas falhas e frestas das pessoas”, incandescente, forjar sua opinião, agora afiada e inquebrável.

 

Grace volta para o carro e pede pelo poder, imediato. Como que para extinguir quaisquer dúvidas que ainda poderia ter, ela é chamada por Tom para uma conversa. O porta-voz do lugar desculpa-se e usa o medo como sua justificativa, logo a seguir diz que o exemplo ali superou suas expectativas, construindo ao redor de Grace um pilar de certeza inabalável, e a fazendo voltar ao carro.

 

Grace julga Dogville (“o mundo ficaria bem melhor sem esta cidade”) e pede a seu pai um apocalipse. O que ela diz antes que a ordem seja executada lhe retira qualquer argumento de que estivesse agindo por legítima defesa ou algo que resguardasse um hipotético direito seu. Isto caso fosse usá-los, é claro. Nesta parte, von Trier começa a brincar com nossas noções de moralidade, fazendo com que a frase dita por Grace seja saboreada como um molho que passasse pelo azedume do choque inicial, um certo agridoce do súbito questionamento para que, só no fim, percebêssemos o suculento e voraz sabor carnal da vingança descendo e massageando nossa garganta.

 

“Há uma família com filhos...”, o silêncio de Grace é interpretado como o prenúncio de uma resposta óbvia pelo espectador, que recebe isto: “mate os filhos primeiro e faça a mãe olhar. Diga que se ela chorar, vai matá-los. Eu devo isso a ela”. Vera, a mãe em questão, esposa de Chuck, quebrou os sete bonecos de porcelana que Grace sofrera tanto pra comprar. O que ela devia a Vera era um julgamento, no lugar do falso perdão como instrumento de superioridade. Matar os sete filhos de Vera na sua frente era um modo de saldar a dívida, de dar àquela mulher a chance de pagar pelo que cometeu, conforme dissera seu pai.

 

-Capítulo 8-

(o julgamento final)

 

 

Grace, sem temer a maldição da estátua de sal, pede para que as cortinas do carro se abram e revelem a nova Gomorra sob a luz encarnada das chamas, diluindo-se em si mesma. Ao acaso, Tom permanece como o último cidadão de Dogville vivo. Grace pega a arma de seu pai, caminha até ele, e ouve suas últimas e ainda arrogantes palavras, silenciadas por um tiro na cabeça. Ela retorna ao carro e diz a seu pai que “há coisas que temos que fazer com nossas próprias mãos”. Trata-se da sentença final para Tom Edison Jr., cuja ambigüidade retratada e construída ao longo do filme é quase poética nas mãos de von Trier. Desde o início, somos apresentados a Dogville guiados pela voz sarcástica do narrador e pelos passos de Tom. Trier faz com que gostemos dele, afinal, está se falando do iluminista da história, o homem com idéias à frente de seu tempo, quanto mais de Dogville. Ele é o apaixonado pela mocinha e faz de tudo para libertá-la. “Mas tudo que tinha feito não era bom o bastante”. Tom é o intelectual ocioso, passivo como é da natureza de todo crítico social. Hipócrita ao dizer se rebelar contra um sistema do qual depende, e que terminará por proteger. “Há coisas que temos que fazer com nossas próprias mãos” é um recado dado a todos os personagens que vivem em Tom Edison.

 

Ao fim de tudo, pai e filha se preparam para deixar a cidade, quando ouvem os latidos de Moisés. Ela outra vez sai do carro e vai até ele que, como sempre fez, rosna em resposta a sua presença. Grace impede que o matem, deixando-o em paz, dizendo que “ele só está bravo porque um dia peguei seu osso”. Moisés não gostou de Grace desde o início, apenas ele foi sincero e apenas ele teria motivos para sentir ódio e querer se vingar dela. Desde sempre, Moisés foi o que foi, um cão. Ele não se fez passar por nada, não se cobriu de moralidades, não se escondeu por trás da fachada inocente de Dogville. Por outro lado, os demais habitantes da cidade foram cachorros travestidos de humanos. A violência de sono leve, inerente ao homem, surgiu como a face real da cidade, encoberta pelo traje bucólico e encantador que conquistou Grace. Em contraponto, Moisés nunca fez nada para conquistá-la. Com isso, as esperanças de Grace em ver um mundo melhor através de perdão saem de cena derrotadas, engolidas pelo desfiladeiro junto com a Canyon Street.

 

-Capítulo 9-

(um inquietante final feliz)

 

Durante os créditos finais (compostos por fotos em preto e branco de pessoas comuns, estampadas no fundo musical irônico e provocativo de David Bowie, Young Americans), o espectador tem a chance de começar a digerir a experiência pela qual acaba de passar. E talvez perceba apenas no dia seguinte, se tiver sorte, mas se sair da seção fazendo as perguntas certas, é possível, inclusive, que tenha dificuldades para dormir. Pode até ser subjetivo, mas o fato é que a grande maioria de nós se sentirá muito bem durante aqueles créditos, mesmo sem saber exatamente o porquê. Talvez os assassinatos e a queda de Dogville não tenham surpreendido o espectador (até porque, a primeira frase do narrador é “esta é a triste história da cidade de Dogville”), mas certamente, o que ele sentiu ao presenciar o banho de sangue lhe fará questionar seus princípios.

 

Lars von Trier nos prova que está certo ao nos fazer sentir podres por termos gostado de ver uma chacina, mesmo quando as metralhadoras eram apontadas para velhos e crianças. Assim, nos damos conta, perplexos, de que o final triste é feliz, o mais feliz possível, na verdade. Apenas uma vez tive a chance de provar desta sensação, e ela tinha um sabor esquisito de laranja e graxa, daqueles que, depois de engolir, você não sabe se gostou ou não, ainda que escondesse certeza da resposta, por medo dela.

 

O dinamarquês conseguiu, definitivamente, bem mais que irritar alguns críticos ianques. Tenho certeza de que não foi seu ódio que construiu Dogville, este apenas serviu de faísca para que o parto desta nova obra-prima acontecesse. Todas as referências, as metáforas, a poesia com imagens cruas, e todas as maravilhosas metamorfoses que levam a elas, ocorrem através do irrefutável pessimismo do diretor, que perigosamente, nos invade durante os créditos. O pior (ou melhor) de tudo é concluirmos que talvez não estejamos em frente a uma obra de ficção, talvez a verdade esteja ali, retratada como nunca fora. Talvez mereçamos que um deus intolerante olhe de volta aqui pra baixo e nos esmague. Talvez não haja redenção onde os cães se escondem sob peles de homens... Mas onde, onde é isso? Talvez, “em uma pacata cidade não muito longe daqui”.

 

 

 

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O que dizer,hein? 10 Como eu sempre digo,esse garoto me enche de orgulho...040606

 

O Forasteiro é o garoto-propaganda que todo apresentador de meia-tijela pediu pra Deus! 06 Não percam a 2ª edição de O Cinéfilo (programa que revelu o Forasteiro,aqui no fórum) !!! 0506 (Jabá Time involuntário 06).

 

Estou imprimindo,pra ler com mais calma,lá na cama.Amanhã eu volto aqui.
Enxak2007-01-22 19:00:25
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Parabéns, acho que não deu o que faltar, Foras.

Assisti Dogville apenas uma vez, há um tempo considerável. Mas é impossível ficar indiferente mesmo. Nunca um final de filme me deixou tão satisfeito, na cena da Grace fuzilando as crianças eu estava rindo mesmo, da raiva acumulada. Digam o que quiserem, mas só de me propocionar um momento assim o filme já é foda.

 

O que o Foras citou sobre os estupros é muito pertinente: o que a câmera mostra é apenas o rosto inexpressivo de Grace, quase paciente. Pra vc depois descobrir, que era na verdade tudo desprezo. Teve uma parte que eu comecei a achar meio maçante, tudo se repetia (plus o sentimento de desagrado, que era na hora do caminhão não ter conseguido tirar ela de Dogville), mas era tudo proposital e fazia parte da manipulação do filme.

 

Depois de ver o filme eu acabei descobrindo que era o primeiro exemplar de uma trilogia que o Von Trier ia fazer pra meter o pau nos EUA. Eu fiquei me perguntando que raios isso tem a ver com os EUA, mas tá tudo lá. Sem rever o filme, eu poderia pensar nessas possibilidades:

Dogville seria os EUA, e Grace seria o visitante (ou estrangeiro) que observa tudo pacientemente, pra depois exprimir a visão sobre os problemas do lugar. Esse é o caminho mais óbvio.

 

Mas o que me veio pela cabeça foi a possibilidade da Grace ser os EUA (ou a visão que o país tem de si próprio), que tenta ajudar a todos e se tornar útil; mas depois de revelar para si mesma o que realmente pensava sobre os povos que tentava ajudar, metralhou tudo o que realmente pensava sobre de uma vez só, quebrando todas as máscaras. Se esse raciocínio sobreviver, é realmente impressionante o trabalho que o Von Trier dá pro assunto; quebrando todos os paradigmas que vc tem sobre a relação entre o opressor e oprimido (não gosto muito desses termos, mas enfim...) e criando uma visão cínica fantástica num pedaço de cinema. Pode ser viagem minha, mas acho que consideraria como possibilidade antes de eu rever o filme.
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Parabéns' date=' acho que não deu o que faltar, Foras.

Assisti Dogville apenas uma vez, há um tempo considerável. Mas é impossível ficar indiferente mesmo. Nunca um final de filme me deixou tão satisfeito, na cena da Grace fuzilando as crianças eu estava rindo mesmo, da raiva acumulada. Digam o que quiserem, mas só de me propocionar um momento assim o filme já é foda.

 

O que o Foras citou sobre os estupros é muito pertinente: o que a câmera mostra é apenas o rosto inexpressivo de Grace, quase paciente. Pra vc depois descobrir, que era na verdade tudo desprezo. Teve uma parte que eu comecei a achar meio maçante, tudo se repetia (plus o sentimento de desagrado, que era na hora do caminhão não ter conseguido tirar ela de Dogville), mas era tudo proposital e fazia parte da manipulação do filme.

 

Depois de ver o filme eu acabei descobrindo que era o primeiro exemplar de uma trilogia que o Von Trier ia fazer pra meter o pau nos EUA. Eu fiquei me perguntando que raios isso tem a ver com os EUA, mas tá tudo lá. Sem rever o filme, eu poderia pensar nessas possibilidades:

Dogville seria os EUA, e Grace seria o visitante (ou estrangeiro) que observa tudo pacientemente, pra depois exprimir a visão sobre os problemas do lugar. Esse é o caminho mais óbvio.

 

Mas o que me veio pela cabeça foi a possibilidade da Grace ser os EUA (ou a visão que o país tem de si próprio), que tenta ajudar a todos e se tornar útil; mas depois de revelar para si mesma o que realmente pensava sobre os povos que tentava ajudar, metralhou tudo o que realmente pensava sobre de uma vez só, quebrando todas as máscaras. Se esse raciocínio sobreviver, é realmente impressionante o trabalho que o Von Trier dá pro assunto; quebrando todos os paradigmas que vc tem sobre a relação entre o opressor e oprimido (não gosto muito desses termos, mas enfim...) e criando uma visão cínica fantástica num pedaço de cinema. Pode ser viagem minha, mas acho que consideraria como possibilidade antes de eu rever o filme.
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Ah, viram? Dogville tem muito a oferecer e eu sequer havia imaginado tal possibilidade, Rubysun. Faz sentido, realmente. Mas e se os EUA forem representados por Tom? O manipulador, erudito, que trata vidas humanas como meros meios para atingir um objetivo maior, que ajuda e intervém a favor dos mais fracos se fazendo valer de segundas intenções. De qualquer forma, sem dúvida, a encarnação da terra ianque cabe aos dois personagens. Muito bem observado.

 

Ah sim, obrigado, e a todos que vêm lendo e participando do tópico. É uma honra e uma responsabilidade imensa ter a audiência de pessoas tão inteligentes e que entendem muito mais de cinema do que eu. Dá medo mesmo, se querem saber.
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Tom é a personificação perfeita da nação ianque, com sua cara de bom moço e suas filosofias baratas. Ele defende a aceitação da Grace, assim como os EUA defendem que são a nação onde os sonhos podem se realizar, e tudo pode acontecer se uma pessoa trabalhar duro o suficiente, o que Grace faz, e portanto é muito coerente que ele seja o idealizador das jornadas de trabalho dela. No entanto, eles fecham os olhos, assim como Tom fecha os olhos para a exploração indiscriminada e para um tratamento sempre opressor.

 

Mas eu também gosto muito da teoria de que pode ser a Grace, Rubysun. É bem interessante, porque se você for pensar, a Grace foi estuprada repetidamente por aqueles em que confia. Então algo a se pensar seria, quem seriam os "estupradores" do país norte-americano?

 

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Thata, não sei se vc queria um conceito mais amplo, mas existem exemplos concretos: no fim dos anos 70 e começo dos anos 80, os EUA ajudaram Saddam Hussein e Osama Bin Laden. 20 anos depois, aconteceu o que aconteceu...

 

Mas se Tom for os EUA, Grace seria o que, e Dogville seria o quê? (a pergunta é quase retórica, só pra desenvolver o ponto de vista melhor)
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Mas o que me veio pela cabeça foi a possibilidade da Grace ser os EUA (ou a visão que o país tem de si próprio)' date=' que tenta ajudar a todos e se tornar útil; mas depois de revelar para si mesma o que realmente pensava sobre os povos que tentava ajudar, metralhou tudo o que realmente pensava sobre de uma vez só, quebrando todas as máscaras. Se esse raciocínio sobreviver, é realmente impressionante o trabalho que o Von Trier dá pro assunto; quebrando todos os paradigmas que vc tem sobre a relação entre o opressor e oprimido (não gosto muito desses termos, mas enfim...) e criando uma visão cínica fantástica num pedaço de cinema. Pode ser viagem minha, mas acho que consideraria como possibilidade antes de eu rever o filme.
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Não é possibilidade, isso é um fato! Grace é os EUA, ela é tão filha da mãe quanto todos os outros... E Manderlay reforça isso de forma ainda mais incendiária.
Dook2007-01-24 09:20:29
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Thata, não sei se vc queria um conceito mais amplo, mas existem exemplos concretos: no fim dos anos 70 e começo dos anos 80, os EUA

ajudaram Saddam Hussein e Osama Bin Laden. 20 anos depois, aconteceu o que aconteceu...

 

Não, eu não conseguia me lembrar de nada mesmo, Rubysun. Obrigada pelos exemplos.

 

Mas se Tom for os EUA' date=' Grace seria o que, e Dogville seria o quê? (a pergunta é quase retórica, só pra desenvolver o ponto de vista melhor)[/quote']

 

Mas Grace também poderia ser aqueles que são considerados fracos e exploráveis por eles, mas que escondem em si um grande potencial de destruição. Eu pensei nesse sentido porque o estupro é considerado uma exerção de poder, de dominação, então Grace poderia representar todos aqueles subjugados. Mas não descarto a possibilidade de todos representarem os EUA, de maneiras diferentes, talvez concebendo que não importa como os americanos sejam diferentes entre si e estejam em posições opostas, sua natureza é a mesma(e de todas as pessoas não-americanas também). Da mesma forma Dogville poderia representar os aliados, guiados por Tom (EUA) à ruína, ou os próprios EUA guiados pela própria ganância e narcisismo ao fracasso. O fato do filme se passar na grande depressão reforça ainda mais essa idéia. 

 

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Como estarei fora semana que vem inteira (viajando)vou postar a crítica do Dook para Cidadão Kane, filme citado em TODAS as listas de melhores filmes de todos os tempos, descubra porque:

 

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CIDADÃO KANE - Crítica por Dook

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FILME: Cidadão Kane de Orson Welles (1941)

 

SINOPSE: A trajetória de Charles Foster Kane, magnata da mídia americana, contada por amigos e conhecidos, discorrendo sobre sua ascensão meteórica e seu súbito declínio até a decadência final, isolado em seu castelo.

 

cidadao_kane03.jpg

 

 

O QUE EU ACHO: Ao falar de determinados filmes, às vezes fica difícil fugir do óbvio. E acho que isso poderia acontecer com Cidadão Kane se eu tivesse absorvido dele apenas o mais óbvio, a saber, a vida de Charles Foster Kane. Para mim, a vida do cara é o que menos me interessa. Conforme assistia ao filme, eu começava a perceber o quanto ele era incendiário por diversos motivos... Mas nada me preparou para uma visão única e calamitosa do papel da imprensa, um ente ‘intocável’ graças a insistência dos paladinos da democracia que se esquecem que, na maioria das vezes, a democracia é a ditadura da maioria.

 

Cidadão Kane é polêmico não porque é baseado na vida do sensacionalista e crápula William Hearst; Cidadão Kane não é polêmico pq mostrava a imprensa como um ente que manipula e distorce informações (embora isso revelado em 1941 já seria motivo suficiente para ataques cardíacos fulminantes em editores dos grandes jornais estadunidenses). Mas além destes aspectos citados, Cidadão Kane é um filme explosivo pq mostra a imprensa como algo que ela, no fundo, é: uma EMPRESA com fins para lá de lucrativos que, protegida pela ‘liberdade de expressão’, destrói vidas, derruba governos, fomenta guerras, incensa imbecis a um papel de destaque. Tudo isso não para satisfazer o desejo de alguns poucos interessados (que também é nojento), mas principalmente, para se ganhar DINHEIRO! A informação utilizada para fins capitalistas, visando o lucro. Embora pareça óbvia a descoberta, não consigo parar de pensar que isso jamais foi abordado de forma tão cruel quanto <?:namespace prefix = st1 ns = "urn:schemas-microsoft-com:office:smarttags" /><?XML:NAMESPACE PREFIX = ST1 />em Cidadão Kane... Não ao menos que eu tenha visto (o que é bem provável, já que me considero um cinéfilo de poucos e seletivos filmes o que nunca é bom sinal). Considerando ainda que o filme foi feito em 1941, em plena Segunda Guerra, é de se espantar que Welles tenha ‘apenas’ ferrado sua carreira por causa deste filme (e, como Hearst e seu clone fictício Charles Kane, teve um declínio súbito e fulminante)...

 

Mas talvez a maior ironia desta visão da imprensa que o filme passa (e fica claro que a alfinetada não é somente em cima da imprensa ‘marrom’ que Kane/Hearst comandavam, mas a tudo que envolve a publicação de informação) é como a democracia é algo complexo de se entender e de se viver. Um sistema extremamente falho, que permite a ascensão desmedida de déspotas sob a alcunha de ‘estadistas’; que permite o vilipêndio da privacidade e honras alheias sob a alcunha de ‘liberdade de expressão’ (o Dioguito Mainardi que o diga, talvez o maior Cidadão-Kane-wannabe de nossa história jornalística), também permite que obras maravilhosas como esta de Orson Welles sejam feitas e exibidas para todos aqueles que querem assisti-la.

 

Mas Cidadão Kane não é uma obra excepcional apenas por sua visão sem concessões da imprensa. É também um excelente exercício de desconstrução de personagens em que, ao final, sabemos menos destes personagens do que quando começamos a ter informações sobre eles. A narrativa, não linear, torna-se ainda mais saborosa quando o roteiro coloca as mesmas situações sobre diferentes depoimentos quando percebe-se que não somente Kane se torna mais complexo (e real) mas seus conhecidos, antes tidos como pessoas de moral ilibada, começam a também serem desconstruídos sistematicamente e de forma crua.

 

Mas Cidadão Kane não é uma obra excepcional apenas por ser, inclusive, um excelente exercício de desconstrução de personagens sob uma narrativa não linear. É também um exemplo de excelência técnica. Welles brinca com a imagem de modo a manipular o espectador para que ele tenha uma idéia do que está sendo mostrado para, em seguida, desfazer nossa concepção formada sobre aquelas imagens mostradas anteriormente. Cenas como a do peso de papel que cai no chão no início do filme poderiam ser feitos facilmente hoje em dia com Avid e qualquer software Maia... Mas como foi feito em 1941??

 

cidadao_kane02.jpg

 

Enfim, Cidadão Kane ficou para história basicamente por sua técnica arrojada (detalhe: Welles nunca tinha pego uma câmera na mão antes, nem dirigido filmes, nem nada relacionado a cinema) e em como o filme foi sendo discutido e analisado com o passar dos anos. Pra mim ficou o retrato sincero e cruel do que é a imprensa na realidade e aqueles que a comandam. E isso só basta para eu compreender pq ele é considerado por muitos como o melhor filme já feito. Não é o meu caso em particular, pois ainda não vi todos os filmes já feitos e 2001 – Uma Odisséia no Espaço ainda é o bam-bam-bam do meu Top 10 de sempre como o melhor filme que eu já vi... Entretanto, isso não tira de Cidadão Kane o status de OP que ele faz por merecer. Numa revisitada futura, quem sabe ele também irá constar no meu Top 10 de sempre?

 

PRESTE ATENÇÃO: No filme inteiro, oras!

 

O QUE JÁ SE DISSE: ‘É o melhor filme já feito’; ‘É o filme mais importante da história do Cinema’.

 

PORQUE NÃO PERDER: É o filme que definiu diversas técnicas cinematográficas e inspirou diretores e muitas de suas OPs. Você ainda terá a coragem de perder?

 

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DADOS DO DVD: O filme é apresentado em seu formato original Fullscreen, pois o filme é velho, de uma época em que só se fazia filmes em fullscreen. A imagem está cristalina! Parece que fizeram o filme hoje e jogaram um filtro P&B na película! Simplesmente maravilhoso! O som é a mixagem original mono, mas com algumas vibrações sutis no subwoofer...

 

Quanto aos extras, temos o documentário ‘A Batalha por Cidadão Kane’, uma obra tão incendiária quanto o próprio filme que a inspirou, só que desta vez descendo a lenha no próprio Orson, com direito a depoimentos do mesmo já bem velho e obeso.

 

O documentário aproveita também para humilhar ainda mais o já humilhado William Hearst e joga no mesmo saco Welles, seu personagem Kane (tido como um reflexo da personalidade do próprio Welles) e o próprio Hearst.

 

Acompanham o prato principal:

 

Notas sobre a Produção e a Pós-produção
Notas sobre elenco e realizadores
Comentário de Peter Bogdanovich
Comentário de Roger Ebert
Cenas da Estréia em Nova York

 

O DVD é duplo.
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Essas múltiplas interprertações sobre "Quem representa os EUA no filme?" só reforçam aquela assinatura clássica do Serge...

 

Eu acho que mesmo querendo fazer uma críticas aos EUA, o filme acaba sendo uma análise da população geral mesmo. Aquilo ali serve como crítica para várias sociedades, não só a dos EUA.
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O Nacka está certo, eu sempre venho primeiro aqui e as razões são óbvias. Uma delas está aí, a ótima resenha do Dook sobre Cidadão Kane. Bem incisiva, com expressões repetidas de forma proposital, para pontuar o texto (algo que ele já tinha feito na análise de A Última Tentação de Cristo), informal, agressiva e apaixonada - a crítica é a cara do Dook. Parabéns!

 

E o filme é show. Do início ao fim.
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O Nacka está certo' date=' eu sempre venho primeiro aqui e as razões são óbvias. Uma delas está aí, a ótima resenha do Dook sobre Cidadão Kane. Bem incisiva, com expressões repetidas de forma proposital, para pontuar o texto (algo que ele já tinha feito na análise de A Última Tentação de Cristo), informal, agressiva e apaixonada - a crítica é a cara do Dook. Parabéns!

 

E o filme é show. Do início ao fim.
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Thanks... 05

 

Mas como disse, a análise está aquém do filme... Gostaria de poder revê-lo mais umas duas vezes antes de resenhá-lo.
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Infelizmente não pude ver Dogville, porque o DVD da locadora estava quebrado. Mais adiante, lerei a crítica do Forasteiro que parece ser uma enciclopédia.

Quanto a Cidadão Kane, pretendo revê-lo, de qualquer forma, ótima a crítica do Dook: rápida e direta, denotando agilidade e marcações (como foi supracitado pelo Alexei) criativas, além de inaugurar outros porquês da beleza de Cidadão Kane, associando-o ao contexto sócio-histórico. Para mim, ainda melhor que a anterior, A Última Tentação de Cristo.

 

Quanto a Os Imperdoáveis, revisto. Subiu no conceito, mas tem uns probleminhas e, desta vez, poderei justificar.
ltrhpsm2007-01-30 09:22:26
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Irei rever o filme hoje à tarde, mas, forçando um pouco a memória, lembro que, na época em que o vi, os "truques" de Welles para fazer o espectador pensar estar vendo uma coisa e depois mostrar que na realidade é outra me pareceram não só exercícios de estilo; foram a forma que o diretor encontrou para fazer um paralelo visual com a imprensa mostrada no longa, que também manipula a realidade conforme seus interesses.

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