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Nacka
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Concordo quanto ao final, rubysun. Ficou um pouco literal aquela idéia de que todo "machão" preconceituoso é necessariamente homossexual. Há mulheres por aí tão preconceituosas e conservadoras quanto o personagem do Cooper. Isso mostra que o preconceito tem raízes muito mais profundas do que a própria sexualidade do indivíduo. Nem sempre o preconceito vem de dentro para fora.

 

Já a cena do saquinho voando, eu acho sensacional. Acho que me identifiquei com aquilo, já que gosto muito de ficar observando esses takes do dia-dia a que, normalmente, ninguém dá a mínima. Talvez nem todos consigam enxergar a beleza daquela filmagem ou a do pássaro morto, mas pra quem conseguir, o efeito será maravilhoso. 03
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Ao contrário de muitos eu gostei muito da atuação da Annete, que para mim faz justamente o contrário da atuação do Kevin, enquanto um é mais "tímido" a outra já é mais caricata, e os dois personagens pediam atuações assim, achei realmente ótimas, tanto que se não tivesse a Hilary Swank naquele ano, o Oscar seria da Annete (IMO).

 

A cena do saquinho é uma das cenas mais belas que já vi em um filme, o modo como ele é mostrado sendo carregado pelo vento, e depois as colocações feitas pelo Ricky, é de uma  beleza incalculável.

 

Gostei da crítica do Troy, pelo que vi é a primeira dele, e já começou com o pé direito. Também nunca fiz nenhuma crítica assim, sou novato "nisso", mas vou dar o melhor de mim na crítica do filme O abismo do medo, mas enquanto esse dia não chega, só posso parabenizá-lo pela coragem e pela ótima crítica.
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Pessoal, o Deadman não conseguiu terminar a tempo sua crítica para Touro Indomável, do Martin Scorsese. Por esta razão é que teremos uma substituição na resenha da próxima semana. Como não consegui entrar em contato com ele para saber quando seu texto será entregue, em breve será postada a agenda do Cineclube com as eventuais modificações. Peço desculpas pelo transtorno.

 

Em substituição, na próxima segunda-feira teremos a crítica do filme Herói (Ying Xiong, 2002), de Zhang Yimou, feita pelo usuário Noonan. Será um grande momento para o tópico, pois aquele que é, para mim, um dos mais belos filmes dos últimos anos, esteticamente brilhante, excepcionalmente editado e com um elenco de primeira linha (Tony Leung, Zhang Ziyi e Maggie Cheung), será dissecado por uma das mais belas resenhas já publicadas no Cineclube.

 

hero-poster05.jpg

A plasticidade maravilhosa de Herói, na fotografia de

Christopher Doyle

 

 

* Prêmio Alfred Bauer do Festival Internacional de Berlim

* Melhor Fotografia - Associações de Críticos de Cinema de Chicago, Nova York, Hong Kong, Seattle, San Diego

* Melhor Diretor - Associação Nacional dos Críticos de Cinema dos EUA

 

 

P.S.: Dead, esvazie sua caixa de mensagens!

 

Anjo da Semana no BBBCeC

Post 3 de 10
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Pessoal' date=' o Deadman não conseguiu terminar a tempo sua crítica para Touro Indomável, do Martin Scorsese. Por esta razão é que teremos uma substituição na resenha da próxima semana. Como não consegui entrar em contato com ele para saber quando seu texto será entregue, em breve será postada a agenda do Cineclube com as eventuais modificações. Peço desculpas pelo transtorno.

 

Em substituição, na próxima segunda-feira teremos a crítica do filme Herói (Ying Xiong, 2002), de Zhang Yimou, feita pelo usuário Noonan. Será um grande momento para o tópico, pois aquele que é, para mim, um dos mais belos filmes dos últimos anos, esteticamente brilhante, excepcionalmente editado e com um elenco de primeira linha (Tony Leung, Zhang Ziyi e Maggie Cheung), será dissecado por uma das mais belas resenhas já publicadas no Cineclube.

 

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A plasticidade maravilhosa de Herói, na fotografia de

Christopher Doyle

 

 

* Prêmio Alfred Bauer do Festival Internacional de Berlim

* Melhor Fotografia - Associações de Críticos de Cinema de Chicago, Nova York, Hong Kong, Seattle, San Diego

* Melhor Diretor - Associação Nacional dos Críticos de Cinema dos EUA

 

 

P.S.: Dead, esvazie sua caixa de mensagens!

 

Anjo da Semana no BBBCeC

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 Ops!!! 08 08 Foi mal, Alexei! Nem tinha reparado que já estava cheia... Caixa normalizada! 05 
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Concordo quanto ao final' date=' rubysun. Ficou um pouco literal aquela idéia de que todo "machão" preconceituoso é necessariamente homossexual. Há mulheres por aí tão preconceituosas e conservadoras quanto o personagem do Cooper. Isso mostra que o preconceito tem raízes muito mais profundas do que a própria sexualidade do indivíduo. Nem sempre o preconceito vem de dentro para fora. [/quote']

 

Nunca vi nada no filme que deixe a entender essa generalização... Não é todo machão preconceituoso que é homossexual, mas o personagem machão de Cooper que é... A beleza disso é a incrível ironia da situação. O macho viril na verdade gosta é de dar a bunda e não exterioriza isso por causa de seus próprios valores distorcidos, uma prévia do que veríamos mais tarde em Brokeback Mountain...
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Legal a crítica do filme, aborda algumas coisas interessantes. Mas discordo em alguns pontos...

Não acho que o filme seja admirado apenas por fazer uma crítica a hipocrita sociedade americana. Essa posição de querer parecer para os outros, o que não é, não é exclusiva deles, todos nós fazemos isso.

 

     O filme para mim é sobre conquistas. No início do filme Loster esta no fundo do poço. Durante as duas horas de projeção acompanhamos o seu despertar, seu crescimento e sua busca pela felicidade quase que "juvenil" abandonada e esquecida a muito tempo.

     Durante esse despertar vemos Loster quebrando pratos, se exercitando, largando o emprego e realizando seus sonhos de adolescência.

     Só não gosto do final, que na minha opinião, vai contra tudo o que foi mostrado durante o filme.

 

 
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Sobre o saquinho de plástico, juro que ia colocar de outra forma, não me decidindo se a sacola representava uma metáfora ou era apenas uma viagem do Ricky. Mas acabei me decidindo pela metáfora pra ficar mais facíl na hora de fazer a resenha 02

 

E vendo a opinião dos outros usuários não só aqui mas também lá no tópico de comentários, realmente Beleza Americana fala de vários outros assunto que eu nem dei muita importância e tal. Fiquei convenientemente cego, digamos.

 

E finalmente, sobre Herói, anciosissímo, adorei o filme 16

 

 

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Concordo quanto ao final' date=' rubysun. Ficou um pouco literal aquela idéia de que todo "machão" preconceituoso é necessariamente homossexual. Há mulheres por aí tão preconceituosas e conservadoras quanto o personagem do Cooper. Isso mostra que o preconceito tem raízes muito mais profundas do que a própria sexualidade do indivíduo. Nem sempre o preconceito vem de dentro para fora. [/quote']

 

Nunca vi nada no filme que deixe a entender essa generalização... Não é todo machão preconceituoso que é homossexual, mas o personagem machão de Cooper que é... A beleza disso é a incrível ironia da situação. O macho viril na verdade gosta é de dar a bunda e não exterioriza isso por causa de seus próprios valores distorcidos, uma prévia do que veríamos mais tarde em Brokeback Mountain...

 

Isso que eu citei seria uma espécie de "consenso popular" sobre o assunto. A meu ver, o filme ganharia mais pontos se fugisse de uma idéia já tão convencional. De qualquer forma, ainda é OP.03
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Sim, é um 'consenso' popular, mas é uma realidade que muitos machões gostam mesmo é de dar a bunda. A história de Hollywood está aí para confirmar isso (Rock Hudson, alguém?). O filme simplesmente pega esse fato (que, repito, existe, embora não da forma generalizada que prega o consenso popular) e o exterioriza no personagem de Cooper para enfatizar o tema 'vivendo de aparências', essência do filme como um todo.

 

Aliás, Sam Mendes lançou mais gasolina no incêndio na época de lançamento do filme dizendo que a questão do personagem de Cooper era comum: há MUITOS gays no exército.
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O filme para mim é sobre conquistas. No início do filme Loster esta no fundo do poço. Durante as duas horas de projeção acompanhamos o seu despertar' date=' seu crescimento e sua busca pela felicidade quase que "juvenil" abandonada e esquecida a muito tempo.

     Durante esse despertar vemos Loster quebrando pratos, se exercitando, largando o emprego e realizando seus sonhos de adolescência.

     Só não gosto do final, que na minha opinião, vai contra tudo o que foi mostrado durante o filme.

 

 
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Pelo contrário! O final do filme sintetiza perfeito tudo o que foi mostrado. Beleza Americana não é um filme sobre conquista. É um filme de um cara que resolveu se livrar das convenções, chutar o pau da barraca e ser feliz da maneira dele. Entretanto, ele teve um preço alto por isso: a sociedade com a qual ele se revoltou, se 'vingou' dele (a mulher o traiu, o homossexual o matou).

 

Bottom line: numa sociedade hipócrita, presa a convenções idiotas que não possuem fundamento algum (onde tudo é explicado como 'é assim pq é assim'), não há espaço para pessoas que queiram fazer coisas diferentes, serem felizes do seu jeito. E isso é um tapa na cara de qualquer um, principalmente do americano que adora colocar tudo dentro de 'molduras morais'.

 

Lembro-me que quando minha mãe viu o filme ela detestou. Nunca soube me dizer o porquê. Somente revendo-o, anos mais tarde, é que saquei o porquê do desgosto: Lester é exatamente o oposto da minha mãe. A minha mãe se contenta com um trampo de secretária executiva, quando sempre fala que queria ser psicóloga. Mas não abandona o emprego e dá as caras para bater pq acha que pode não dar certo, que 'nessa vida vc precisa agir na certeza, investir em retorno garantido', etc. Atitudes como a do Lester de chutar o emprego que nunca lhe dá o reconhecimento devido (caso da minha mãe), se orgulhar disso e, depois de anos de estudo e investimento terminar como atendente de lanchonete é suicidio para a mamãe...

 

Como vê, Beleza Americana não é um filme sobre conquistas... Rocky é...  
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Pelo contrário! O final do filme sintetiza perfeito tudo o que foi mostrado. Beleza Americana não é um filme sobre conquista. É um filme de um cara que resolveu se livrar das convenções, chutar o pau da barraca e ser feliz da maneira dele. Entretanto, ele teve um preço alto por isso: a sociedade com a qual ele se revoltou, se 'vingou' dele (a mulher o traiu, o homossexual o matou).

 

No filme a sociedade já estava passando por cima de Loster. Sem contato afetivo com sua filha, com sua mulher, mesmo antes do seu "despertar", já distante, e seu casamento havia "terminado" à algum tempo. Ela só não o traiu antes por falta de oportunidade.

A parte final que eu acho incoerente é exatamente sobre ela. Durante o filme é mostrado um desprezo dela com Loster, como se ele fosse apenas um fardo agarrado à sua vida. Ver ela agarrada a suas roupas, conturbada, não me convenceu.

 

Bottom line: numa sociedade hipócrita, presa a convenções idiotas que não possuem fundamento algum (onde tudo é explicado como 'é assim pq é assim'), não há espaço para pessoas que queiram fazer coisas diferentes, serem felizes do seu jeito.

 

Concordo, quando você diz que ele quebra convenções. Mas a nossa sociedade tem muita dessa característica tbm.

O casal de gays vizinho de Loster talvez seja a família mais admirável do filme.
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O filme de Lars Von Trier' date=' literalmente dissecado pelo Forasteiro. Uma peça de 9 atos, cada um deles esmiuçados até formarem um todo assustador.

 

Se você ainda não assistiu corra... já pensou se você morre amanhã? Para se ter uma idéia, o Bernardo Krivochein declara em sua crítica que o master do filme deveria ser emoldurado e posto em uma galeria... OP obrigatória para todo cinéfilo que se preze.

 

Assim como o filme, econômico em seus cenários, a crítica do Forasteiro terá apenas a imagem do cartaz... ah e se você é daqueles (as) que detestam spoilers tá fazendo o quê aqui?

 

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Filme: Dogville (2003), de Lars von Trier<?:namespace prefix = o ns = "urn:schemas-microsoft-com:office:office" /><?:NAMESPACE PREFIX = O />

 

Sinopse: Fugindo de gângsters, uma bela mulher recebe a ajuda da população de uma pequena cidade para conseguir se esconder. Dirigido por Lars Von Trier (Dançando no Escuro) e com Nicole Kidman, James Caan, Chloë Sevigny e Lauren Bacall no elenco.

 

Prólogo

(que nos apresenta à história e seus personagens)

 

Lars von Trier, diretor dinamarquês e um dos fundadores do Manifesto Dogma 95 (http://pt.wikipedia.org/wiki/Dogma_95), nunca deveria ter sido provocado. Aqueles que o fizeram, lançaram sobre o cinema a sombra de uma fumaça densa e suja, materialização física do ódio de von Trier que, como uma praga divina, recairia sobre suas cabeças, amaldiçoando a “terra das oportunidades” com a mais terrível e pervertida crítica que jamais havia sofrido. Em Dançando no Escuro (imediatamente anterior a Dogville, sobre uma imigrante que vive o inferno na terra ianque), acusaram-no de incoerência e preconceito xenófobo ao realizar um filme sobre um lugar no qual nunca esteve, como se fosse necessário conhecer a matriz que imprimiu o mundo à sua imagem e semelhança. Motivado pelos ataques, portanto, o dinamarquês decide que o melhor modo de revidar é no ringue, iniciando assim uma trilogia de pretensões ambiciosas, batizada de “USA: The land of opportunities”, composta por Dogville, Manderlay e Washington.

 

Dogville é uma cidadela interiorana e quase auto-suficiente que recheia as montanhas rochosas dos Estados Unidos na década negra de 30, engolida pela Grande Recessão. Nela, vive pouco mais de uma dezena de pessoas dos mais variados tipos, incumbidas das mais comuns e variadas funções. Tudo corria normalmente no lugarejo até que Tom Edison Jr. (Paul Bettany), aspirante a escritor e filósofo, responsável pela organização social e porta-voz de Dogville, ouve tiros no vale e encontra Grace (Nicole Kidman), uma doce e indefesa fugitiva da máfia. Ele a coloca para dentro da cidade e convence seus pacatos moradores a abrigá-la, em troca de algumas tarefas a princípio supérfluas.

 

A primeira coisa que chama a atenção em Dogville é, obviamente, seu cenário. O filme foi todo rodado em um galpão de mil e seiscentos metros quadrados, na gélida e nórdica Suécia. Apesar de parecer que von Trier está, meramente, seguindo à risca os mandamentos cunhados por ele em Copenhagen , a ausência absoluta de requintes tem razões metafóricas poderosas para acontecer. Adornos como jardins e pés de groselha são representados por rudimentares rabiscos de giz, tal como o cachorro Moisés. Não existem portas ou paredes na meia dúzia de casas da Elm Street, e não há horizontes em Dogville, apenas dois fundos de cores diferentes, separando o dia da noite. No entanto, ouvimos os latidos de Moisés e os rangidos das portas imaginárias que vemos os moradores abrindo, até que passamos também, em um processo fantástico de adaptação que não dura mais de meia hora, a ver as montanhas e vales que cercam a vila, a sentir a profundidade e o isolamento do lugar, a enxergar as fissuras nas paredes das casas e a textura dos caminhos de terra (os que eu vi eram de terra). É como se o diretor nos desse o esqueleto de Dogville para que a construíssemos em nossas mentes, como se funcionasse através de uma sobreposição de imagens, que se completa ao encontrar as peças que faltavam quando atravessa retinas diferentes. Em certo momento, Tom conversa com Grace sobre seu livro e não sabe com que nome batizará a cidade fictícia na qual é ambientado. Grace sugere “Dogville”, e Tom responde que isso dissiparia a atmosfera universal da estória. Situando seu povoado nos Estados Unidos e o montando de forma que funcione através de olhos individuais, Lars von Trier eleva ao conceito máximo a frase que ilustra a capa do filme, “uma pacata cidade não muito longe daqui”. Dogville é, até o fim, um resumo claro e pessimista do mundo.

 

-Capítulo 1-

(a cidade dos sonhos...)

 

Mesmo que Trier insista em editar seu filme a partir de “nove capítulos e um prólogo”, o que remete ao tom teatral que o acompanha, ele pode muito bem ser quebrado em três, assim como a maioria dos roteiros e suas trilogias de “plot-points”. Grace chega à cidade, Grace é explorada, Grace se vinga. No tal prólogo, muito mais que ao restante dos personagens, o sarcasmo do narrador nos apresenta a Tom e seus anseios, seus métodos de persuasão através de “exemplos”. Tom quer provar ao mundo suas teorias, começando por Dogville, é claro. Segundo ele, há uma dificuldade muito grande em “aceitar”, que “o país não iria tão mal se houvesse mais aceitação”, e precisa de um exemplo forte e concreto para provar sua pseudo-filosofia. É onde entra Grace. Tom vê em Grace sua oportunidade, fazendo com que os habitantes daquela cidadezinha simpática a abriguem, dando a ela duas semanas de “testes”, para que possam depositar confiança na garota.

 

E ela se encanta por Dogville. Encontra na cidade tudo que procurava quando fugiu, e passa a vê-la como a mais perfeita representação do paraíso bucólico, residente talvez nos seus sonhos e fantasias mais antigos, na infância que desejou, mas que nunca alcançou (como é revelado no ato final). “Dizer que Dogville era bonita, era, ao menos, original”, aponta o narrador, com uma sempre presente carga de ironia. Pois se Grace a havia achado bonita, foi porque a cidade, assim como para seus espectadores, atravessara um filtro óptico, que completou a crueza do que realmente era com os desejos e frustrações do que Grace queria que ela fosse. A partir daí, a forasteira dócil e simpática passa a desejar o que perdera, estando disposta a tudo para ajudar seus sofridos habitantes até, quem sabe, tornar-se um deles. Ela, que conheceu apenas a maldade e a arrogância vivendo entre os gângsteres (“uma infância triste, um homicídio”), refugia-se em Dogville em busca do que nunca teve. E além de querer encontrar, ela, acima de tudo, quer acreditar que vai encontrar.

 

O preço pelo abrigo é trabalho braçal. “Dogville lhe deu duas semanas, o que dará a ela?”, indaga Tom, na noite em que apresenta a Grace o lugar que ama. O problema é que, aparentemente, não havia nada para ser feito. Grace vai a todas as casas, fala com todas as pessoas e, no entanto, não consegue nenhuma ocupação. O trabalho seria o condutor que aproximaria Grace de Dogville, seria o catalisador da confiança, ela precisava disso. Com a intervenção de Tom, porém, pouco a pouco vão surgindo coisas nas quais ela poderá se tornar útil. Grace passa a receber um pequeno salário e, “fazendo tarefas que não precisavam ser feitas”, conversando com um cego muito vaidoso, ajudando Vera com seus sete filhos, Sra. Henson com os copos, Ben com a garagem, o pai de Tom com os remédios, Chuck com o pomar, Bill com os cálculos, Martha com o piano, Olívia com a inválida June, e Ma Ginger com os arbustos de groselha, ela passa a se integrar e conhecer os moradores, sentindo-se parte daquilo e, claro, encantando-se ainda mais. Gradativamente, os pobres citadinos de Dogville percebem o quão maravilhoso é ter alguém fazendo o que não precisava ser feito, e o supérfluo torna-se necessário, fazendo com que a votação na igreja após duas semanas tome resultado óbvio.

 

-Capítulo 2-

(... wake up, Grace)

 

Quando a primavera se deita sobre Dogville, a polícia vai à cidade pela primeira vez, talvez em toda sua existência, trazendo consigo um cartaz. Nele, a foto de Grace é acompanhada pela palavra “desaparecida”, e os moradores acabam se assustando, o que resulta em uma nova reunião. A Sra. Henson se preocupa com a última frase do policial, dizendo que se a vissem deveriam ligar para as autoridades, e que isso “é a lei”. Aparentemente, a idéia de infligir a lei incomodava aquelas pessoas, “que nunca se metiam em nada”. O simples fato de estarem fazendo algo considerado “moralmente questionável” fazia com que a possibilidade de entregar alguém que já conheciam há semanas fosse digna de avaliação, mesmo que o motivo de sua fuga permanecesse oculto.

 

Uma (talvez inevitável) paixão envolve Tom e Grace, agora unidos por teoricamente bem mais que pena e gratidão. Quando chega o feriado e a festa de 4 de Julho, no entanto, Tom perde a primeira chance de tornar seus sentimentos públicos, e ao mesmo tempo, paradoxalmente, revela pela primeira vez sua falta de coragem. Na mesa de jantar, noite da festa, enquanto Dogville cantava orgulhosa o hino dos Estados Unidos da América, Grace já era tida como o que seu nome significa, é considerada enfim o presente do qual Tom falava no início. Logo após Jack Mckay (o cego ante-citado) fazer um discurso emocionado sobre a alegria de todos ao terem Grace por perto, a polícia visita a cidade pela segunda vez. Com outro cartaz. Enquanto a fugitiva se esconde na mina, como combinado, o medo de todos diante daquela autoridade começa a pesar em Dogville, como se evaporasse de cada um, formando uma camada espessa que levitava sobre a cidade, bloqueando a luz do sol e asfixiando os arbustos de groselha. “A palavra ‘perigosa’, no cartaz, assustou a Sra. Henson”, diz Tom a Grace. O policial disse que a moça loira era procurada por assaltos a banco, que haviam acontecido há duas semanas atrás. Mesmo com um álibi em mãos, com grande padrão de confiança conquistado, a palavra “perigosa” havia assustado a Sra. Henson. Neste momento, os moradores da vila revelam uma inviolável dependência e entrega cega às garras do sistema. Não importava o quanto Grace se esforçara, não importava se o que encontrara em Dogville eram amigos, eles estariam dispostos primeiro ao Estado, depois a ela.

 

As coisas mudaram no dia seguinte. Representando seus vizinhos, Tom impõe a Grace que agora Dogville corre mais perigo, e que precisa de mais em troca. E apesar do que Tom sentia por Grace, é ele quem propõe a desgastante nova jornada de trabalho. Mesmo que nada fosse verdade, Vera, Ma Ginger, Chuck e os outros esperavam o momento em que usariam seu presente à vontade. Pois agora, tinham um motivo justificado pra isso, e não queriam a verdade caso esta não lhes conviesse. As tarefas de Grace se intensificaram, mas seu salário (com o qual comprava os bonecos porcelânicos de gosto duvidoso), não. Aliás, pelo contrário.

 

Agora, Grace precisa passar nas casas de cada um duas vezes ao dia, o que lhe dá meia hora de trabalho por vez em cada casa. O dia alucinante de Grace é acompanhado com muita inventividade por von Trier que, em dado momento, sob uma vista aérea da cidade, desenha na tela as casas de um relógio e transforma a sombra da torre da igreja em um ponteiro. Quando Martha toca o sino outra vez, avisando Grace que mais um turno de trinta minutos acabara, ela corre para não chegar atrasada ao pomar de Chuck e pega um atalho pelo caminho de terra través dos canteiros de groselha de Ma Ginger, que a repreende. Para Ma, Grace não podia usar a passagem. Este momento é crucial e revela mais uma das garras do filme contra, não só os Estados Unidos, mas todo e qualquer representante do primeiro mundo procurado por imigrantes. Boa parte do império ianque se apóia com força sobre a imigração ilegal, que no caso, é toda representada por Grace. Grace até podia ser boa para ajudar a todos nas mais diversas funções, a trabalhar quase de graça por mero abrigo, mas não era o bastante para que pudesse passar por entre as groselhas de Ma Ginger. Apesar de ajudar a construir a cidade, Grace apenas poderia ficar grata por Dogville recebê-la e abrigá-la. Ela seria eternamente um peão, uma operária, uma base de descarga, um fio-terra. Tudo, menos um deles. Grace viveria para Dogville, mas jamais teria Dogville. Um quartinho num canto, assim como Moisés, era o máximo que conseguiria. Mesmo cuidando diariamente dos arbustos de groselha, não lhe era permitido usar o caminho entre eles.

 

Após o estafante dia de trabalho atravessado por Grace, Tom a visita, e algo ligeiramente estranho acontece. Durante a conversa inteira, ele parece justificar todas as condenáveis ações dos seus vizinhos.

 

-Capítulo 3-

(primeiro estupro)

 

É irônico e até previsível que a queda das faces em Dogville comece pelas crianças. Jason, um dos sete filhos de Vera e Chuck, é o primeiro entre todos a chantagiar Grace. Revelando uma predileção excêntrica pelo masoquismo, ele pede a Grace que bata nele. No ato final, ela talvez até tenha pensado em Jason antes de fazer o que fez, como parte do futuro da cidade, como o espinho que surgiria nas groselhas com a aurora da próxima primavera. Jason seria um produto de Dogville, provavelmente o máximo que pudesse oferecer ao mundo. Caso a cidade tivesse continuidade, um Jason manipulador e masoquista seria deixado de presente a alguém que passasse por ali anos mais tarde.

 

Basicamente, há dois estupros significativos em Dogville. Um cometido por Chuck, e outro, por Ben. Chuck não gostava da presença de Grace até que, em sua companhia junto ao pomar, seu desejo sexual é despertado. Em outra visita da polícia, para colar outro cartaz, Chuck vê a chance para conseguir o que quer. Usando os policiais e o medo de Grace por ser descoberta, ele a chantageia ao silêncio e a estupra em sua casa. Lembrem que falei, no início, das razões metafóricas poderosas que envolveram a decisão de von Trier pela ausência de paredes. Enquanto Grace é violentada, através das paredes inexistentes é possível ver com clareza os demais habitantes da cidade. Distraídos, displicentes, indiferentes. E acima de tudo, é possível ver Tom, o homem que a ama, há poucos metros de distância.

O espectador aqui é abençoado com a onipresença divina, apenas ele vê e sente o que está acontecendo. É quando a câmera vai para a Elm Street, e percebemos que as aparências começam a despencar. Diferentemente de alguém que estivesse passando pelo lugar, conseguimos enxergar através das paredes, através da face dócil e amena daquela cidadezinha pequena onde todos se conhecem, e nos defrontamos com o horror. Intrínseco. Somos usados como parte da trama para que a passividade conveniente e o pacifismo aparente de Dogville entrem em choque com o absurdo sofrido por Grace. Daria para imaginar a obra de Trier encadernada como um livro, mas não há possibilidade de reprodução do que a cena acima representa. Utilizando seu narrador e suas imagens, von Trier acaba criando uma poesia sutil entre literatura e cinema. Faz com que o sarcasmo do narrador seja tão incomparável quanto o choque que o primeiro estupro produz. Somos apresentados ao funcionamento de duas linguagens diferentes, e como Dogville perderia grande parte da sua mágica caso fossem separadas.

 

Logo após o estupro, quando Chuck bate a porta e encontra Tom do lado de fora, este sem dúvida sabe o que aconteceu. Era inteligente e a obviedade do que acabara de ocorrer lhe saltava aos olhos, ainda mais com a resposta que ouvira de Chuck ao perguntar se Grace estava ocupada. No entanto, deixava sua covardia quase contorná-lo e destacá-lo entre as montanhas rochosas que tragavam a cidade. Ele pára em frente à porta, e enquanto Grace chora dentro da casa, ele faz um gesto como se fosse entrar, mas desiste. Tom teme o que vá encontrar e a responsabilidade que teria que assumir, assim, prefere permanecer admitindo uma falsa ignorância, apenas para preservar seu ócio e indiferença.

 

A esta altura, Chuck violentava Grace todos os dias no pomar. Vera, esposa de Chuck, ao saber da “saliência” de Grace para com seu marido, resolve visitá-la à noite. Um por um, Vera estraçalha no chão os bonecos de porcelana que Grace havia comprado, através de muito trabalho oferecido à cidade. Além que quebrá-los, ela tortura Grace, dizendo que só pára se ela contiver suas lágrimas. Logo no início do filme, quando Tom apresenta Dogville a Grace, os dois param em frente à única loja do lugar e discutem a aparência dos tais bonecos. Grace, que até pouco tempo teria dito que eram horríveis, agora os considera bonitos. Os bonecos funcionam como o termômetro do que Dogville é para Grace. Na noite em que foi apresentada, ela estava rodeada por todos os lados de uma esperança inocente, de um altruísmo verdadeiro combinado com as segundas intenções de se tornar, também, parte daquele lugar. Após semanas de trabalho e salários conquistados, Grace vai comprando um a um os sete bonecos, convicta de que está conquistando, a partir de cada um deles, um pedacinho a mais de Dogville e seus habitantes. Mas quando Vera vai a sua “casa”, depois que o primeiro estupro acontece, e quebra os bonecos, as esperanças de Grace também são quebradas. Seus sonhos de constituir uma vida que sempre desejou e de ser Dogville morrem estilhaçados. Desiludida, Grace decide fugir, e Tom, ajudá-la. Ben, que saía de manhã cedo no caminhão e descia a Georgetown com as maçãs, parece a escolha perfeita no plano de Tom para evadir Grace e dar-lhe a “liberdade”. É quando o segundo estupro acontece.

 

 

-Capítulo 4-

(segundo estupro)

 

Grace deita na parte de trás do caminhão, junto às maçãs, coberta por uma lona que, através da câmera de Lars von Trier, torna-se transparente. Ben pára o caminhão, diz para Grace não fazer barulho porque estavam na frente de uma igreja, e a estupra. Apesar de o ato em si não se diferenciar em nada do praticado por Chuck, os elementos e as circunstâncias o tornam tão cruel, simbólico e único quanto. Não me pareceu coincidência alguma que Ben tenha parado exatamente em frente à igreja, concebendo a própria materialização do barroco, onde o imaculado se encontra com o profano, paradoxo cujo sentido se amplifica no ato final. Também é notória a hipocrisia clássica que verte do momento. Enquanto Ben se sentia envergonhado por ir a um prostíbulo uma vez por mês, mas ia, não se orgulhava do que estava fazendo. No entanto, fazia, e com prazer. Porém, para amenizar qualquer culpa que possa vir a sentir, Ben precisa de um motivo, precisa também de sua justificativa. Ao encurralar Grace, ele diz que precisa cobrar um adicional para transportar “cargas perigosas”. Sabendo que ela não tinha nada, faz questão de receber da pior forma possível.

 

Por fim, a lona transparente nos traz de volta àquela onisciência supracitada, quando ganhamos asas e olhos de deuses, voando sobre o caminhão e apenas observando o que acontece. O que incomoda na cena, o que a torna tão dura e fria, é a opção de von Trier por nos colocar em frente a um estupro, onde não vemos partes do corpo à mostra nem nada que remeta à sexualidade, apenas a expressão sem vida no rosto de Grace. Não sentimos Ben, de costas, sentimos Grace. Parte de um processo pelo qual nos compadecemos gradativamente com a dor da personagem, e começamos a ter idéias das quais, certamente, não nos orgulharíamos. Ao menos não antes do ato final. Depois do estupro, ela adormece tranqüila, pensando já estar longe de Dogville e seus habitantes. A (também aparente) fragilidade de Grace é capaz de desenhar aqui a cena mais bonita de todo o filme, tornando-se inclusive seu rosto em cartazes e locadoras.

 

Traída por Ben (como se já não bastasse) ela é levada de volta à vila e julgada por, além da fuga, um crime que não cometeu: o roubo do dinheiro do pai de Tom. Quem pegou o dinheiro, na verdade, fora o próprio Tom, confessando a Grace que ajudou a convencer os habitantes de Dogville sobre sua injusta culpa, exercendo sua vocação à manipulação. Tom havia pegado o dinheiro, mas não iria a lugar algum, pois apesar de pregar contra o sistema, dependia dele. Tom não podia ignorar a pensão que seu pai lhe dava. Apesar de tudo, nosso iluminista se justifica com Grace, e muito bem.

 

-Capítulo 5-

(a coleira)

 

A esta altura, Dogville depende de Grace. As tarefas que não precisavam ser feitas, através do condicionamento, tornam-se essenciais. Bill Henson, cuja habilidade em engenharia evoluiu unicamente a partir dos auxílios de Grace, constrói agora uma espécie de coleira que a prende à cidade. Contudo, superando seus limites, Bill concebe o aparelho com tal inventividade que permite a Grace realizar suas tarefas, apesar do cárcere. É clara a intenção de Lars von Trier ao nos fazer olhar Grace rastejando de lá pra cá, arrastando uma roda de ferro e com um sino no pescoço, como se fosse uma vaca ou algum animal criado para servir. Dogville tem, agora, mais uma razão para explorar a fugitiva e, conseqüentemente, encontrando na vingança falsa um pretexto para abusar dela de todas as maneiras. Grace conhece a fúria e a crueldade debaixo daquela atmosfera nostálgic. Os homens da cidade, à exceção de Tom, passam a visitá-la periodicamente. Os estupros se seguem incontáveis, punindo a garota através de pecados fabricados.

 

Preocupado com a situação, Tom resolve que é hora de convocar uma reunião para que Grace denuncie cada um de seus agressores face a face. “Mentiras, mentiras deslavadas!”, esbravejam eles, quando Grace os confronta com a verdade. Suas acusações acabam servindo como estopim para uma reação defensiva da cidade: entregar Grace. Na noite da reunião, depois que ela é mandada para sua “casa”, Tom sai e vai até lá. Declarando seu amor por Grace, ele tenta possuí-la argumentando que era o único em Dogville sem ainda tê-la tocado. Apesar de amá-la e de “planejar a seu favor”, Tom, voltado para seus interesses (no momento, comuns aos do resto da cidade), tenta também explorar Grace. No entanto, ela também o confronta com a verdade por um instante. Diz que pode fazer como os outros e ameaçá-la também. Ele enrijece. O terceiro estupro explícito não ocorre. Tom sai da casa de Grace, pensa, pega um número de telefone e volta para a reunião.

 

No dia seguinte, surpreendentemente, Grace dorme até meio-dia sem ser incomodada. Quando sai, é tratada com uma cordialidade absurda pelos cidadãos de Dogville, e descobre que ganhou dois dias de folga. Tom teve a idéia, obviamente, e confessa a Grace que se inspirou com o acontecido na noite anterior, podendo assim finalmente iniciar seu livro. Parecia que Tom, enfim, havia encontrado o exemplo que queria, e nada mais o impedia para que começasse a cavar nas almas humanas, “bem onde criam bolhas”. Apesar de tudo, o jovem filósofo parecia estar obtendo êxito, parecia enfim ter provado a Dogville que ele tinha razão. Para ele, tudo não passa de um experimento egoísta, e, portanto, não precisando mais de Grace, ele a devolve, e Dogville também. Alimentada pelas acusações de Grace na reunião e pelo forte poder de persuasão de Tom Edison Jr.

 

-Capítulo 6-

(ELES visitam Dogville)

 

O ato final, permeado pela conversa no carro e a chacina, concentra os minutos e palavras mais importantes desta obra-prima de Lars von Trier. Depois de descobrirmos que Grace é filha de um gângster poderoso e que ele só está ali a fim de levá-la para casa, um diálogo recheado de metáforas e referências é travado. A primeira coisa que se sobressai é a personificação clara de Cristo e Deus em Grace e seu pai (cujo nome nunca é revelado, interpretado por James Caan) quando, para tentar trazê-la de volta, lhe oferece parte de seu “poder”. O que se segue vem a confirmar esta visão, como quando Grace diz “não sou eu quem está julgando, pai, você está”, e ele a responde “você não julga ninguém porque tem pena deles”. A esta altura, já presenciamos uma espécie de debate divino para decidir o destino de meros mortais. Grace tenta justificar a inocência de seus agressores, o que pode ser traduzido como um “perdoai-lhes, eles não sabem o que fazem!”, seguido de uma argumentação promotorial protagonizada por seu pai:

 

- Estupradores e assassinos podem ser vítimas pra você, mas pra mim são cachorros.

- Os cães obedecem à sua própria natureza, por que não merecem perdão?

- Podemos ensinar muitas coisas úteis para os cães, mas NÃO se lhes perdoarmos sempre que obedecem à sua natureza.

 

Segundo o pai de Grace, portanto, o livre-arbítrio é passaporte válido para um julgamento que pode levar os seres humanos tanto à punição, quanto à redenção. Grace, encarnando o messias que desce a Dogville para salvar suas almas, não acredita nisso, e é onde entra a arrogância da qual ela e seu pai tanto falam. Perdoando toda e qualquer ação, Grace estaria lhes negando o julgamento garantido através do livre-arbítrio. “Todo ser humano deve responder pelos seus atos, mas você nem dá a eles esta chance”. O braço misericordioso de Grace é falso, e ela ergue-se sobre ele permanecendo acima do resto, tomando para si o conceito de “perdoar é divino”. “Você perdoa às pessoas com desculpas que nunca permitiria dar a si mesma”, diz-lhe seu pai.

 

Depois que Grace repete várias vezes suas intenções de permanecer na cidade, seu pai pede que saia, pense um pouco, porque ele tem certeza de que ela mudará de idéia. Dando uma volta na Elm Street, decorada agora por sombras com metralhadoras e os rostos pálidos de seus habitantes, a compadecida e não mais fugitiva Grace coloca-se no lugar da carne fraca e pergunta a si mesma se, sinceramente, não teria feito o mesmo caso morasse em uma daquelas casas.

 

-Capítulo 7-

(ela muda de idéia)

 

No entanto, uma lua cheia e simétrica se acende no céu de Dogville, derramando sobre ela uma luz ácida e áspera. Finalmente, Grace vê a cidadezinha sem as paredes e sem as portas. Vê reveladas as feras por baixo dos homens e assiste aquela luz que “penetra nas falhas e frestas das pessoas”, incandescente, forjar sua opinião, agora afiada e inquebrável.

 

Grace volta para o carro e pede pelo poder, imediato. Como que para extinguir quaisquer dúvidas que ainda poderia ter, ela é chamada por Tom para uma conversa. O porta-voz do lugar desculpa-se e usa o medo como sua justificativa, logo a seguir diz que o exemplo ali superou suas expectativas, construindo ao redor de Grace um pilar de certeza inabalável, e a fazendo voltar ao carro.

 

Grace julga Dogville (“o mundo ficaria bem melhor sem esta cidade”) e pede a seu pai um apocalipse. O que ela diz antes que a ordem seja executada lhe retira qualquer argumento de que estivesse agindo por legítima defesa ou algo que resguardasse um hipotético direito seu. Isto caso fosse usá-los, é claro. Nesta parte, von Trier começa a brincar com nossas noções de moralidade, fazendo com que a frase dita por Grace seja saboreada como um molho que passasse pelo azedume do choque inicial, um certo agridoce do súbito questionamento para que, só no fim, percebêssemos o suculento e voraz sabor carnal da vingança descendo e massageando nossa garganta.

 

“Há uma família com filhos...”, o silêncio de Grace é interpretado como o prenúncio de uma resposta óbvia pelo espectador, que recebe isto: “mate os filhos primeiro e faça a mãe olhar. Diga que se ela chorar, vai matá-los. Eu devo isso a ela”. Vera, a mãe em questão, esposa de Chuck, quebrou os sete bonecos de porcelana que Grace sofrera tanto pra comprar. O que ela devia a Vera era um julgamento, no lugar do falso perdão como instrumento de superioridade. Matar os sete filhos de Vera na sua frente era um modo de saldar a dívida, de dar àquela mulher a chance de pagar pelo que cometeu, conforme dissera seu pai.

 

-Capítulo 8-

(o julgamento final)

 

 

Grace, sem temer a maldição da estátua de sal, pede para que as cortinas do carro se abram e revelem a nova Gomorra sob a luz encarnada das chamas, diluindo-se em si mesma. Ao acaso, Tom permanece como o último cidadão de Dogville vivo. Grace pega a arma de seu pai, caminha até ele, e ouve suas últimas e ainda arrogantes palavras, silenciadas por um tiro na cabeça. Ela retorna ao carro e diz a seu pai que “há coisas que temos que fazer com nossas próprias mãos”. Trata-se da sentença final para Tom Edison Jr., cuja ambigüidade retratada e construída ao longo do filme é quase poética nas mãos de von Trier. Desde o início, somos apresentados a Dogville guiados pela voz sarcástica do narrador e pelos passos de Tom. Trier faz com que gostemos dele, afinal, está se falando do iluminista da história, o homem com idéias à frente de seu tempo, quanto mais de Dogville. Ele é o apaixonado pela mocinha e faz de tudo para libertá-la. “Mas tudo que tinha feito não era bom o bastante”. Tom é o intelectual ocioso, passivo como é da natureza de todo crítico social. Hipócrita ao dizer se rebelar contra um sistema do qual depende, e que terminará por proteger. “Há coisas que temos que fazer com nossas próprias mãos” é um recado dado a todos os personagens que vivem em Tom Edison.

 

Ao fim de tudo, pai e filha se preparam para deixar a cidade, quando ouvem os latidos de Moisés. Ela outra vez sai do carro e vai até ele que, como sempre fez, rosna em resposta a sua presença. Grace impede que o matem, deixando-o em paz, dizendo que “ele só está bravo porque um dia peguei seu osso”. Moisés não gostou de Grace desde o início, apenas ele foi sincero e apenas ele teria motivos para sentir ódio e querer se vingar dela. Desde sempre, Moisés foi o que foi, um cão. Ele não se fez passar por nada, não se cobriu de moralidades, não se escondeu por trás da fachada inocente de Dogville. Por outro lado, os demais habitantes da cidade foram cachorros travestidos de humanos. A violência de sono leve, inerente ao homem, surgiu como a face real da cidade, encoberta pelo traje bucólico e encantador que conquistou Grace. Em contraponto, Moisés nunca fez nada para conquistá-la. Com isso, as esperanças de Grace em ver um mundo melhor através de perdão saem de cena derrotadas, engolidas pelo desfiladeiro junto com a Canyon Street.

 

-Capítulo 9-

(um inquietante final feliz)

 

Durante os créditos finais (compostos por fotos em preto e branco de pessoas comuns, estampadas no fundo musical irônico e provocativo de David Bowie, Young Americans), o espectador tem a chance de começar a digerir a experiência pela qual acaba de passar. E talvez perceba apenas no dia seguinte, se tiver sorte, mas se sair da seção fazendo as perguntas certas, é possível, inclusive, que tenha dificuldades para dormir. Pode até ser subjetivo, mas o fato é que a grande maioria de nós se sentirá muito bem durante aqueles créditos, mesmo sem saber exatamente o porquê. Talvez os assassinatos e a queda de Dogville não tenham surpreendido o espectador (até porque, a primeira frase do narrador é “esta é a triste história da cidade de Dogville”), mas certamente, o que ele sentiu ao presenciar o banho de sangue lhe fará questionar seus princípios.

 

Lars von Trier nos prova que está certo ao nos fazer sentir podres por termos gostado de ver uma chacina, mesmo quando as metralhadoras eram apontadas para velhos e crianças. Assim, nos damos conta, perplexos, de que o final triste é feliz, o mais feliz possível, na verdade. Apenas uma vez tive a chance de provar desta sensação, e ela tinha um sabor esquisito de laranja e graxa, daqueles que, depois de engolir, você não sabe se gostou ou não, ainda que escondesse certeza da resposta, por medo dela.

 

O dinamarquês conseguiu, definitivamente, bem mais que irritar alguns críticos ianques. Tenho certeza de que não foi seu ódio que construiu Dogville, este apenas serviu de faísca para que o parto desta nova obra-prima acontecesse. Todas as referências, as metáforas, a poesia com imagens cruas, e todas as maravilhosas metamorfoses que levam a elas, ocorrem através do irrefutável pessimismo do diretor, que perigosamente, nos invade durante os créditos. O pior (ou melhor) de tudo é concluirmos que talvez não estejamos em frente a uma obra de ficção, talvez a verdade esteja ali, retratada como nunca fora. Talvez mereçamos que um deus intolerante olhe de volta aqui pra baixo e nos esmague. Talvez não haja redenção onde os cães se escondem sob peles de homens... Mas onde, onde é isso? Talvez, “em uma pacata cidade não muito longe daqui”.

 

Preste atenção:

 

Nos dois estupros e no diálogo entre Grace e seu pai.

 

Por que não perder:

 

Porque é uma obra-prima, me chocou de tal forma que não consegui pensar em outra coisa durante uma semana toda. Um filme pra pendurar na parede da sala, cujas questões levantadas renderiam livros inteiros.

 

O que já se disse:

 

“Uma sensação plena de satisfação, de que uma história foi explorada ao seu máximo. Definitivamente, menos é mais.”

Bernardo Krivochein ( Zeta Filmes)

 

Dados do DVD (Ed. De Colecionador e fora de catálogo):

 

Imagem

 

Fullscreen

 

Áudio

 

Dolby Digital 5.1 (Inglês), Dolby Digital 2.0 (Inglês e Português)

 

Extras (Disco 2)

 

Documentário Dogville Confessions

 

Entrevista com Lars Von Trier

 

Trailer

[/quote']

 

 

Desculpem-me, mas eu TINHA que quotar isso aqui. Confesso que subestimei o Forastes como cinéfilo, mas esse review consegue o quase milagre de ser tão perfeito quanto o filme. Parabéns Foras!10

 

Falar algo além é redundância pura, mas como redundar é viver:

 

 

Dogville (Dir.: Lars Von Trier) starstarstarstarstar

 

[berro Insurdecedor Mode On]

 

DO CA-RA-LHO!!!!!161616

 

 

[/berro Insurdecedor Mode Off]
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Queria dar os meus 2¢ sobre Beleza Americana. Esse filme teve altos e baixos para mim, quando assisti pela primeira vez, tinha adorado...depois de umas 3 reassistidas ao longo dos anos, o filme tinha começado a ficar chato, comecei a achar tudo metódico demais, ainda mais comparando-o com outros filmes que englobam o mesmo tema, como Gente como a Gente do Robert Redford.

 

Até que comecei a vê-lo sobre uma ótica diferente, o Lester sem duvidas é o centro do filme, mas pra mim a personagem que carrega a mensagem principal é justamente o Ricky. O filme não só mostra que a beleza fútil é a que mais tem valor perante a sociedade, mas ele ensina o espectador a perceber a real beleza, e isso acontece justamente na cena do video, com o saco voando. Se aquilo tinha um significado (como o que o Troy disse, da juventude seguindo a corrente), não foi o que eu achei. Pra mim aquilo é apenas um saco voando, e se trata de uma cena linda, assim como a pomba morta, ou a imagem da morte, como preferirem. Não preciso de uma metáfora para dar valor naquilo...(aliás existem muitos filmes em que tentamos achar significados para coisas que não precisam deles).

 

Mas tudo o que eu estou querendo dizer se resume na brilhante fala, do Ricky "It was one of those days when it's a minute away from snowing and there's this

electricity in the air, you can almost hear it. And this bag was, like, dancing

with me. Like a little kid begging me to play with it. For fifteen minutes. And

that's the day I knew there was this entire life behind things, and... this

incredibly benevolent force, that wanted me to know there was no reason to be

afraid, ever. Video's a poor excuse, I know. But it helps me remember... and I

need to remember... Sometimes there's so much beauty in the world I feel like I

can't take it, like my heart's going to cave in. "

Talvez até haja algum significado para o saco, mas ele muda de pessoa para pessoa, cada um pode sentir uma coisa diferente olhando uma cena daquelas, inclusive nada.

A essência do filme está aí.  A parte sublinhada é uma coisa pela qual eu já passei, e que me remeteu diretamente ao filme e a cena do saco, e foi a partir daí que comecei a dar mais valor à Beleza Americana.

 

 

Eu só queria dizer tb que

1)A "América" não é um país, é um continente, ao contrário do que se diz muito por aí...

2)A sociedade americana realmente é muito atacada no filme por seus valores e convenções, mas será que é só a americana que é assim? Somos um reflexo daquele país, e apesar da nossa sociedade ser lúcida para odiar alguém como George Bush, a balança volta a se equilibrar com a nossa hipocrisia de achar que somos muito diferentes deles... a questão homossexual é só um dos exemplos  para ilustrar a semelhança.

 

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 No filme a sociedade já estava passando por cima de Loster. Sem contato afetivo com sua filha' date=' com sua mulher, mesmo antes do seu "despertar", já distante, e seu casamento havia "terminado" à algum tempo. Ela só não o traiu antes por falta de oportunidade.[/quote']

 

Passando como? Repare que o novo chefe de LESTER (e não Loster, pelamordedeus!) pede a ele que elenque a importância de sua função para mantê-lo no emprego... Se fosse como vc coloca, a empresa já o teria mandado embora no início do filme... O casamento havia terminado, mas pq ele estava letárgico e a esposa era uma sonsa. A filha nunca fala com ele pq ele é um letárgico e a filha uma rebelde sem causa... Não tem nada de 'sociedade passando por cima dele aí não'. A coisa começa quando ele efetivamente 'desperta'.

 

Quanto à traição não penso dessa forma, embora sua colocação seja relevante. Veja que a relação dos dois fica INSUPORTÁVEL a partir do momento que ELE se rebela. Até ali, estava tudo cômodo para ambos. A partir daquele 'despertar' ela percebe que precisa tirar o prejuízo em outro canto...

 

A parte final que eu acho incoerente é exatamente sobre ela. Durante o filme é mostrado um desprezo dela com Loster' date=' como se ele fosse apenas um fardo agarrado à sua vida. Ver ela agarrada a suas roupas, conturbada, não me convenceu. [/quote']

 

Hein? Qual a incoerência aí? O que tem a ver as roupas dela com a morte do marido?

 

Concordo, quando você diz que ele quebra convenções. Mas a nossa sociedade tem muita dessa característica tbm.

O casal de gays vizinho de Loster talvez seja a família mais admirável do filme.

 

Mas em nenhum momento eu disse que a nossa sociedade não é assim e citei o exemplo da minha mãe que é bem brasileira...
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Hein? Qual a incoerência aí? O que tem a ver as roupas dela com a morte do marido?

Acho que não fui claro. Depois do filme mostrar um relacionamento abalado e falso, quando Lester morre Carolyn abraço as roupas dele conturbada.

Alguns podem dizer que talvez ela tenha se lembrado da época de recém casados quando eram felizes ( como na cena do parque de diversões mostrada no filme). Mas para mim, simplesmente não se encaixa.

 

Mas em nenhum momento eu disse que a nossa sociedade não é assim e citei o exemplo da minha mãe que é bem brasileira...

 

Sim, eu não falei isso diretamente pra você.  É que uma coisa que me irrita um pouco sobre esse filme é que em algumas discussões quando ele é citado, alguem fala que mostra a podridão escondida da sociedade americana, mas sem notar que está muito presenta na nossa tbm.

 

seilah, aheuahe minhas raizes americanas estão falando por mim.
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Queria dar os meus 2¢ sobre Beleza Americana. Esse filme teve altos e baixos para mim' date=' quando assisti pela primeira vez, tinha adorado...depois de umas 3 reassistidas ao longo dos anos, o filme tinha começado a ficar chato, comecei a achar tudo metódico demais, ainda mais comparando-o com outros filmes que englobam o mesmo tema, como Gente como a Gente do Robert Redford.[/quote']

 

 Aconteceu comigo 12

 

 E gente, relaxem. O Loster deve ter sido por causa do World e tal. Ele deve ter "corrigido" sozinho e eu nem me toquei, perdão02

 

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Herói, by Noonan

 

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Filme: Herói (Ying xiong, 2002), de Zhang Yimou. Com Tony Leung, Maggie Cheung, Jet Li, Chen Dao Ming, Zhang Ziyi, Donnie Yen.<?:namespace prefix = o ns = "urn:schemas-microsoft-com:office:office" /><?:NAMESPACE PREFIX = O />

 

Sinopse: Um prefeito de uma pequena província (Li) apresenta-se ao rei de Qin (Dao Ming), que tenta conquistar os outros reinos e unificar a China, e afirma ter matado os três mais temidos assassinos da região: Espada Quebrada (Leung), Neve Voadora (Cheung) e Céu (Yen). Como prova, traz as espadas dos inimigos. No entanto, o rei não dá crédito à sua versão de como tudo aconteceu e começa a desmascarar uma conspiração — e os fatos são recontados através da visão de diferentes personagens.

 

O que eu acho: Herói é um daqueles filmes que, na expressão usada por Stanley Kubrick para se referir a 2001: Uma Odisséia no Espaço, penetram “diretamente o subconsciente do espectador com conteúdo emocional e filosófico”. Em outras palavras, o longa de Zhang Yimou é uma autêntica experiência sensorial, essencialmente subjetiva, calcada em uma sucessão de belas imagens que, juntas, formam uma das mais espetaculares poesias visuais a que já tive o prazer de assistir. Se existe uma palavra que pode definir Herói, essa palavra é “lírico”.

 

O filme é um wuxia, o que, de forma bastante simplificada, significa que é um conto de cavaleiros oriental: há os grandes guerreiros que lutam por sua pátria e morreriam por ela, o código de honra que rege as ações deles, e tudo a que se tem direito no gênero. Existe, inclusive, até mesmo a clássica cena em que um personagem se recusa a atacar outro por este já estar lutando com outra pessoa.

 

Tendo como tema central o heroísmo, o sacrifício em nome de um ideal, não é surpresa que os diálogos por vezes caiam em um sentimentalismo barato (o exemplo máximo é “Eu quero que você viva”, “Mas se você morrer, como poderei viver?”, que os roteiristas devem ter ouvido em alguma novela mexicana), algo que se poderia evitar, mas que na soma final tem um valor ínfimo se comparado a outros aspectos que veremos a seguir.

 

Também dentro dos padrões do gênero, há as inúmeras lutas nas quais a física não se intromete, com os combatentes dando saltos incríveis e agindo como se não tivessem peso algum — há até um duelo que acontece sobre um lago, na imaginação dos dois envolvidos (embora esse último detalhe não tenha a mínima importância). No entanto, revogar a gravidade em Herói tem um objetivo muito diferente do que teria em um filme de ação como os que estamos acostumados a ver; aqui, o ponto não é empolgar o espectador e enchê-lo de adrenalina, e sim alcançar seu senso estético e colocá-lo em primeiro plano. Quem aceitar esse convite se verá recompensado com uma galeria invejável de cenas deslumbrantes, como a já citada luta sobre a água, uma infinidade de flechas se avolumando no céu, e muitas outras — e será difícil, depois, decidir qual delas tem o maior impacto visual.

 

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Tal impacto visual é um dos aspectos que diferenciam Herói dos filmes comuns — e mesmo de outros wuxia, como O Tigre e o Dragão (que é belo, mas não no mesmo nível) — e o transformam na experiência sensorial citada. E o recurso mais marcante utilizado pelo filme nesse quesito, e pelo qual ele é mais lembrado, são as radicais trocas de cores entre as três versões dos fatos que são narradas, com direito a um flashback no qual o verde predomina. Essa troca de cores vai dos figurinos ao cenário, passando pela excepcional fotografia de Christopher Doyle (experimente comparar o deserto que aparece nas três partes do filme, cada vez em uma tonalidade, e ficará espantado). As cores são vermelho na primeira parte, azul na segunda e branco na terceira (na qual está inserido o citado flashback, que mostra o treinamento de Espada Quebrada e Neve Voadora e a fracassada tentativa de assassinato do rei de Qin, três anos antes). Já a conferência entre Sem Nome e o soberano, e a primeira luta narrada, contra Céu, não possuem uma identificação cromática tão explícita.

 

As atuações do trio principal são ótimas, em maior ou menor grau, apesar de Herói não ser um filme que se apóie em seu elenco. Tony Leung e Maggie Cheung são o grande destaque e roubam todas as cenas em que aparecem, encarnando com grande eficácia as diferentes personalidades atribuídas aos seus personagens no decorrer da história. Leung, aliás, tem um desempenho memorável em duas cenas: na biblioteca, quando ouve as supostas últimas palavras de Céu, em silêncio; e no deserto, quando tenta convencer Sem Nome a desistir do plano de assassinato. Jet Li, por sua vez, consegue parecer ameaçador e confuso nos momentos certos, ora se mostrando determinado, ora em dúvida sobre se o que pretende fazer é certo ou não; entretanto, ele acaba sendo ofuscado pelos dois companheiros, tanto por não ter uma performance tão marcante quanto por seu personagem não ser explorado como Espada Quebrada e Neve Voadora. Zhang Ziyi também merece ser mencionada — mesmo não tendo muito espaço no filme, Lua é uma peça chave no trecho vermelho. O mesmo vale para Chen Dao Ming, em torno do qual basicamente gira a trama, e cujo personagem tem aquela que considero a mais importante fala do filme: ele é importante, mas fica em segundo plano em relação ao casal de assassinos.

 

A certa altura de Herói, a habilidade como espadachim é comparada à habilidade como calígrafo. Baseado nesse conceito, Sem Nome pede a Espada Quebrada que lhe faça um ideograma, através do qual ele espera descobrir a verdadeira aptidão do oponente. A fala citada no parágrafo anterior ocorre perto do final: o rei de Qin, já certo de que será assassinado, interpreta o ideograma como sendo o ideal máximo de um guerreiro segundo seu autor. No primeiro estágio, o guerreiro tem a capacidade de usar qualquer coisa como arma; no segundo, pode eliminar o inimigo com as mãos nuas; e, no terceiro, o conceito de matar desaparece, restando apenas a paz. Essa interpretação, a meu ver, lança algumas luzes sobre o filme e o mostra como algo mais que somente uma seqüência de belas imagens.

 

O ideal máximo de um guerreiro

 

A partir daqui começamos a pisar em um terreno que talvez seja mais subjetivo que o normal em uma análise; é onde se situam as discussões sobre o prato preferido de cada um, por exemplo. Em se tratando de um filme como Herói, porém, mostrar uma interpretação profundamente pessoal como a que segue é o mínimo que se pode fazer para dar um panorama completo da opinião que se teve.

 

As três versões dos fatos narradas por Sem Nome e pelo rei de Qin são muito mais que simples referências a Rashomon para mostrar que Yimou sabe a quem agradecer por hoje o cinema oriental ter uma considerável projeção no mundo. O ideograma de Espada Quebrada mostra a evolução de um guerreiro em direção à paz; e as três narrações retratam a transformação de pessoas que dizem ter um ideal a heróis dispostos a morrer por um. Claro que, para todos os efeitos, os trechos vermelho e azul não chegaram a ocorrer, em sua totalidade; mas isso é ver Herói sob um prisma lógico demais — e, mesmo assim, podemos interpretar essas duas primeiras versões como possibilidades do que poderia ter ocorrido.

 

E quais seriam os três estágios dessa transformação? No primeiro, ambos têm um ideal (matar o rei de Qin), mas colocam sentimentos momentâneos, como paixão e raiva, acima dele, e se vêem em uma guerra pessoal que leva à morte de ambos. Vale lembrar que, na definição clássica (e, por que não, clichê), heroísmo significa abdicação, colocar (o que se acredita ser) o bem maior acima de tudo, principalmente no âmbito pessoal. Assim, Espada Quebrada e Neve Voadora estão bem longe do heroísmo nesse trecho; o rei de Qin os descreve como “fúteis”. E a cor vermelha se adequa perfeitamente ao que é mostrado.

 

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No segundo nível, o casal já se aproxima mais da nobreza que lhe é atribuída pelo soberano. Houve a superação da futilidade deles, e o objetivo ganha uma posição na lista de prioridades. Mas, ainda assim, existe algo acima dele: o amor entre os dois, que leva um a ferir o outro para livrá-lo da morte certa — mais uma vez, a causa é relegada a segundo plano. A cor azul fica como representação do amor, um sentimento muito mais sereno que a paixão do primeiro trecho.

 

O terceiro estágio é o arquétipo do heroísmo: agora os objetivos de Espada Quebrada e Neve Voadora são diferentes, e cada um coloca o seu acima até do amor entre ambos — a causa em primeiro plano, todo o resto vindo depois: a abdicação de tudo em prol de um ideal. Mesmo com objetivos distintos, os dois podem ser considerados heróis dentro do conceito clássico e romântico (e, como lembra o até certo ponto óbvio texto inicial, “em uma guerra, há heróis dos dois lados”). E dessa vez nós testemunhamos o ponto de virada: o verdejante confronto com o rei de Qin. A queda das cortinas no final daquela cena é simbólica: naquele momento, também desabavam as crenças de Espada Quebrada, a convicção de que o assassinato era absolutamente necessário — as cortinas estão no chão, e ele pode ver as coisas mais claramente. O branco do trecho representa a paz que Espada Quebrada passa a almejar; o verde do flashback pode refletir a ambição do momento.

 

E as cores não servem apenas para retratar os sentimentos e/ou desejos do casal; também se relacionam com o ideal máximo de um guerreiro: elas vão se suavizando, começando do vermelho (cor do sangue) até chegar ao branco (cor que é sempre usada para representar a paz). O mesmo vale para as lutas: a carga emocional delas, paradoxalmente, aumenta conforme Espada Quebrada e Neve Voadora vão colocando seus ideais acima do restante; e, ao mesmo tempo, se tornam mais reflexivas e poéticas, como um paralelo para a evolução em direção à paz pela qual passa Sem Nome.

 

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Enfim, é o velho e conhecido tema do heroísmo, com o velho e conhecido requisito básico de abdicação de tudo em nome do que se acredita ser o bem comum, mas tratado com inesquecível identificação e beleza visual, e uma construção narrativa que tenta mostrar o caminho que leva alguém a se tornar um herói. Piegas e sentimentalóide? Talvez. Mas funcionou comigo.

 

Herói é realmente uma obra que extravasa os limites comuns da subjetividade e vai “direto no sentimento e na intuição” — é uma das mais naturais e verdadeiras (se essa é a palavra correta) manifestações da Arte; e talvez fazer um filme assim tenha sido, para Zhang Yimou, seu ideal máximo como cineasta.

 

Preste atenção: nas lutas mais deslumbrantes, a no bosque e a sobre a água; na música; na metonímia visual entre o guerreiro e sua espada (as inúmeras tomadas de espadas caindo quando o respectivo portador é ferido ou morto); e em todo o restante.

 

O que já se disse: “As lutas em Herói são pinturas móveis, lúdicas, coloridas, mais carregadas de reflexão do que de ação. Você se perde nessas seqüências como mirando uma paisagem após certo tempo: meio hipnotizado, sente-se o coração encher. (...) Herói conta uma história sobre revolução, sobre amor à pátria... a obra de Yimou plana sobre os mortais, resta-nos admirá-la, sem fôlego, embasbacados.” — Bernardo Krivochein

 

“Quanto a Herói, daqui a alguns anos, quando alguém o mencionar, você se lembrará das cores. Você se lembrará de um mar de folhas douradas e duas moças de vermelho dançando no ar.” — Zhang Yimou

 

Porque não perder: porque é um espetáculo audiovisual; porque é uma daquelas experiências em que a obra e o subconsciente do espectador se aproximam de forma incrível.

 

Dados do DVD:

 

Imagem: Widescreen Anamórfico 16x9

Áudio: Chinês, Português, Inglês, Espanhol (todos Dolby Digital 5.1)

Legendas: Português, Inglês, Espanhol

Extras: “Definição de Herói”; “Dentro da ação: uma conversa com Quentin Tarantino e Jet Li”; Storyboards

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Essa é a resenha feita pelo usuário Noonan, amigos, para o filme do Zhang Yimou. A beleza do texto - meu preferido entre todos aqueles já postados no Cineclube - fala por si própria, dispensando maiores comentários meus. Simplesmente sensacional.

Para mim, o centro emocional do filme é Neve Que Voa, interpretada por uma das melhores atrizes da atualidade, Maggie Cheung, e retratada em três cores principais (vermelho quando agressiva e orgulhosa; azul quando, em polaridade reversa, parece generosa e disposta ao sacrifício e branco - a união de todas as cores - ao final, quando inteira em seu somatório de virtudes e defeitos; gente como a gente, enfim), seguindo a estética primorosa de Herói. Yimou consegue a proeza de colocar uma gama incrível de variações de cores e movimentos em frames magníficos sem que o filme fique visualmente poluído.

 

Poder-se-ia dizer que Herói não deixa de justificar, ou mesmo escusar, a tendência imperialista chinesa. Eu o vejo sob uma perspectiva diferente: o duelo interior que se passa em gente comprometida com uma causa incompatível com suas próprias aspirações pessoais, e os diferentes caminhos que cada um trilha como resultado desse embate interno. Espada Quebrada segue firme eu seu propósito maior, Neve que Voa resiste à anulação de sua própria personalidade. Ao seu jeito, ambos conseguem seu intento, numa cena final muito linda - e que não acho nada piegas.

 

Aguardo comentários, amigos.

 

Post semanal autorizado.
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Já disse isso antes e, depois dessa resenha, tenho que repetir: A disputa pelo prêmio de "Orgulho do Pablo" do "Pablito de Ouro" esse ano será mais acirrado do que nunca.

 

O Noonan conseguiu expressar exatamente todos os sentimentos que envolvem "Herói": uma sublime experiência audiovisual!!! Desde já a minha resenha preferida das que foram publicadas!!!

 

 

Ah, e morra Forasta....06
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Para não permitir que meu colega de universidade morra sozinho, confesso: também acho Herói um filme fraco. Não chego a considerá-lo um filme ruim, mas está muito, mas muito aquém daquilo que poderia ser. Visualmente, é um trabalho impecável, sem dúvida alguma. O trabalho de fotografia e direção de arte do filme, utilizando a paleta de cores para ilustrar os mais diversos significados em meio às belíssimamente coreografadas passagens da obra é louvável, e certamente proporcionam uma experiência visual das mais significantes dos últimos anos. Porém, não sei se é pelo fato de eu não ser nem um pouco ligado à cultura oriental (algo que, acredito, não tenha influência alguma em minha opinião, já que admiro diversas obras provindas do outro lado do oceano - e meu gosto por cinema é universal), mas acho a narrativa da obra fraquíssima, superficial e enfadonha. A história é contada de três maneiras diferentes, que transmitem, logicamente, a visão de um mesmo fragmento de tempo através da ótica de três pessoas diferentes. A grosso modo, sinto que a história não é tão interessante para agüentar ser contada por três vezes seguidas, por mais significante que isso possa ser para seu desenvolvimento, para o raciocínio lógico criado pelo roteiro. Para mim, é mais uma experiência audio-visual (vale ressaltar, brilhante, beirando à perfeição), do que uma obra cinematográfica, propriamente dita, já que a história, no final, acabou apenas diminuindo sua qualidade perante ao meu conceito.  

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Agradeço a companhia na guilhotina do nobre colega de universidade...06

 

Já falei com o Noonan na CMJ, mas não custa repetir aqui. Pra mim, as coisas podem ser resumidas nesta frase: "Piegas e sentimentalóide? Talvez. Mas funcionou comigo".

 

Herói é um colírio para os olhos e um quadro arranhado para os ouvidos.
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