Achei esse fato interessante, fuçando mais informações sobre o Brasil em Veneza:
VENEZA DÁ LEÕES, E GLAUBER FAZ
COMÍCIO
Pedro Del Picchia (Enviado
Especial) Folha de S.Paulo
VENEZA – Quatro filmes ganharam os
três Leões de Ouro do Festival Internacional de Cinema. O prêmio para as grandes
produções foi dividido entre “Glória”, de John Cassavetes, e “Atlantic City”, de
Louis Malle. O prêmio à obra experimental ou de vanguarda ficou com “Megalexandros”,
do grego Theodoros Anghelopulos. E o terceiro Leão, dedicado ao filme estreante,
foi para “Um dia Especial”, do húngaro Peter Gothar. Indignado com a decisão do
júri da Bienal de Veneza, Glauber Rocha – que concorria com “A Idade da Terra” –
fez um comício passeata seguido por dezenas de repórteres, fotógrafos e
cinegrafistas, pela avenida beira-mar do Lido, entre o Hotel Excelsior (o centro
nervoso do festival) e o Palácio do Cinema (onde estão as salas de projeção),
protestando contra “os critérios meramente comerciais de premiação”.
A longa denúncia de Glauber (à qual
me referirei abaixo) é correta em seu aspecto fundamental, de que os prêmios
foram divididos entre as grandes casas produtoras, ficando de quebra um Leão
para o filme húngaro, provavelmente a fim de prevenir possíveis ataques da área
comunista, tão implantada na vida cultural italiana, particularmente na
cinematografia.
Três gigantes estiveram presentes ao
festival. A americana Columbia Pictures, produtora de “Glória”; a
franco-italiana Gaumont, distribuidora de “Atlantic City”; e a Rádio-Televisão
Italiana (RAI), que compareceu à Bienal com mais de dez filmes, entre os quais “Megalexandros”.
“Glória” e “Atlantic City”, como este enviado assinalara, são altamente
premiáveis, concorrendo como estavam numa faixa dedicada às grandes produções,
ao filme de espectador, ao cinema de massa, comercial enfim. O mesmo, porém, não
vale para “Megalexandros” (“Alexandre, o Grande”), que faturou o Leão destinado
ao cinema experimental, de vanguarda.
“Megalexandros” é um novelão de
quatro horas, mais velho que a Grécia. É uma espécie de “Irmãos Coragem”, girado
com menos fantasia e muito hermetismo. Vanguarda por vanguarda, “A Idade da
Terra” está a mil anos na frente.
Quanto à “Um Dia Especial” (“Ajanked
ez a Nap”, no original), é apenas um filme cinzento: a história de uma mulher de
trinta anos, solitária, que, na tediosa vida de professora primária na Hungria,
tem como máxima ambição, possuir um apartamento próprio e casar com o amante já
casado, o que obviamente não consegue fazer. O filme é um esboço do feminismo à
socialista, que, com dez anos de atraso em relação ao Ocidente, está começando a
tomar corpo, no Leste Europeu. Como obra de estréia, havia pelo menos duas
outras melhor recebidas em Veneza por crítica e público: “Going in Style”, do
americano Martin Brest, e “Ópera Prima”, do espanhol Fernando Trueba (uma
história de amor contada com talento e linguagem moderna, que recebeu uma menção
honrosa do júri).
Nove foram os jurados que decidiram
sobre o destino dos três Leões de Ouro. Sob a presidência do cineasta italiano
Gillo Pontecorvo, reuniram-se ontem pela manhã, para escolher os melhores
filmes, os críticos e cineastas Umberto Eco, Suso Cecchi D’ Amico (italianos),
Yussif Chahine (egípcio), Marlen Chuciev (soviético), Michel Ciment (francês),
Andrew Sarris (inglês), George Stevens Jr.(americano) e Margareth Von Trotta
(alemã). Às 13h30, numa entrevista coletiva presidida pelo diretor da mostra de
cinema, Carlo Lizzani, anunciaram a decisão que não surpreendeu a ninguém, à
exceção de Glauber Rocha que, ingênuo, supunha que os critérios culturais se
sobreporiam aos comerciais.
Ressuscitados depois de 12 anos (os
últimos Leões, foram entregues em 1968 e, a partir então, o festival não foi
mais competitivo), os prêmios distribuídos este ano indicam que a Bienal de
Veneza corre o risco de tomar o mesmo caminho de Cannes e transformar-se num
festival das grande produtoras, virando as costas à pesquisa e à vanguarda e, se
assim for, renegando o seu próprio passado de quase meio século de história.
Pessoalmente não afirmo que “A Idade
da Terra” foi o melhor filme, em absoluto, na faixa do novo – mesmo porque, à
média de 12 projeções diferentes por dia, era impossível ver tudo – mas não
tenho a menor dúvida de que o filme de Glauber Rocha é infinitamente superior ao
premiado “Megalexandros”. O primeiro é o futuro, na forma e no conteúdo; o
segundo é o passado, idem, idem. O primeiro é o surrealismo tropical do
Terceiro Mundo que explode; o segundo é a restauração da tragédia grega
clássica. O primeiro é o retrato das novas contestações anti-imperialistas; o
segundo, um discurso tradicional sobre o poder. O primeiro é a percepção do
crescente papel político que a Igreja e as religiões vêm assumindo nos países
subdesenvolvidos; o segundo, uma análise feita mil vezes antes sobre a questão
do subjetivo e do objetivo no processo histórico. O primeiro é a revolução; o
segundo, a academia travestida de vanguarda.
Glauber, ao saber o resultado, chiou
e acusou o júri de ser “pago pela Colúmbia, pela Gaumont e pela RAI, para
premiar diretores de segunda classe como Malle e Cassavetes, e o superado
Anghelopulos”. E acrescentou :”Esta premiação é uma vergonha. Vergonha para a
Bienal de Veneza, vergonha para o Partido Comunista, o Partido Socialista e a
intelectualidade italiana”.
Segurando as mãos de Renzo Rosselini
– produtor italiano, filho do velho mestre Roberto Rossellini – no saguão do
Excelsior, cercado por dezenas de pessoas, o inflamado Glauber afirmou que
“Veneza deixou-se levar pelo imperialismo que veio à Itália buscar legitimidade
cultural para o cinema comercial que produz” e lamentou que “um cineasta de
respeito como Carlo Lizzani (diretor da Mostra) cometa o erro de privilegiar as
grandes produções comerciais”.
“A organização do Festival –
prosseguiu, a esta altura já comandando uma procissão de jornalistas e curiosos
que às vezes o aplaudiam pela avenida beira-mar – programou os filmes do
Terceiro Mundo, árabes e o meu, latino-americano, em horários e sessões
desfavoráveis. Foi um ato racista e de terrorismo cultural, uma agressão aos
países do Terceiro Mundo e ao Brasil”.
A procissão glauberiana, depois de
percorrer uma centena de metros, parou em frente ao Palácio do Cinema, de onde o
cineasta brasileiro desafiou “Malle e os membros do júri a me olharem na cara”.
“O júri foi corrompido, comprado e
pago por Jack Valenti (da Colúmbia) e pela Gaumont e RAI.” E em represália ao
tratamento que os cineastas do Terceiro Mundo receberam prometeu uma “guerra da
comunicação”.
“Nós latino-americanos, não devemos
mais vir a festivais como este, que é feito para americano e para europeu. Aqui
em Veneza foi consumada uma agressão diplomática contra o Brasil e eu vou
começar uma campanha – vou até falar com o presidente Figueiredo – para fechar
os escritórios das produtoras americanas e da Gaumont no Brasil, e para contar
todos os contatos com a RAI. Farei campanha por toda a América Latina, será a
guerra da comunicação contra o imperialismo.”
Antes de retirar-se para seu hotel
em companhia da mulher, Paula, e de seus filhos Aruak e Ava, concluiu: “Aqui,
privilegiada é gente como Anghelopulos, um convencional que não chega aos pés de
Cacoyannis, e Fassbinder, que faz um cinema neonazista. Esses filmes que
ganharam o Leão de Ouro merecem um Leão de m...”
Artigo
publicado na “Folha de S.Paulo”, em setembro de 1980.
guidon2012-02-23 01:15:03