09/07/2009
Pastor das almas
Convidado - Demétrio Magnoli
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mais, em São Paulo, será proibido fumar em qualquer local fechado de
uso coletivo, público ou privado. A lei paulista, patrocinada por José
Serra, bane fumódromos em restaurantes, bares, edifícios públicos e
empresas privadas. Ela também confere compulsoriamente aos
proprietários de estabelecimentos comerciais um poder de polícia,
obrigando-os a fiscalizar a proibição. Entre os deveres dos empresários
se inclui a oferta aos clientes de formulários de denúncia de episódios
de violação da lei.
Nas democracias, o poder público administra
as coisas. Mas a lei de Serra ambiciona administrar as almas, impondo a
virtude e punindo o vício. Na sua intrusividade extremada, representa a
culminância provisória de uma tendência perigosa. Há dois anos o
governo federal tentou moldar os conteúdos da programação de TV por
meio da chamada classificação indicativa, que daria ao Ministério da
Justiça um poder de censura. Em maio, também em São Paulo, entrou em
vigor uma lei proibindo o consumo de bebidas alcoólicas nas faculdades
técnicas e escolas públicas e privadas do Estado, até mesmo por maiores
de idade e em eventos alheios ao ano letivo, o que baniu o quentão e o
vinho quente das festas juninas.
Serra ocupa um posto de
vanguarda, mas não está só. Claudia Costin, a secretária municipal de
Educação do Rio de Janeiro, determinou em junho o recolhimento de um
livro didático de História que contém uma gravura quinhentista de
Theodor de Bry. Costin julgou “inadequada” para alunos do quarto ano a
figuração do empalamento ritual executado por índios tupis contra
inimigos. O seu diagnóstico pessoal cancelou tanto a avaliação formal
do MEC, que havia aprovado o livro, quanto a escolha dos professores
que o selecionaram. A gravura condenada está exposta em museus
visitados por crianças em atividades extracurriculares promovidas pelas
escolas.
Leis e atos do poder público têm a função de proteger
direitos. Mas Serra e Costin parecem enxergar o Estado como um pastor
de almas: o pedagogo dos espíritos devotado a esculpir comportamentos
culturais. Sob essa perspectiva, os cidadãos ocupam o lugar de pupilos
ainda irresponsáveis, expostos à sedução do vício e carentes de uma
autoridade virtuosa capaz de protegê-los de si mesmos.
Não há
direito legítimo protegido pelas leis de Serra ou pelo ato de Costin.
Numa sociedade que preza a liberdade, o direito dos não-fumantes
ficaria preservado pela simples informação de que determinado bar ou
restaurante se destina a fumantes. Uma solução mais restritiva é exigir
a implantação de fumódromos confinados nos estabelecimentos que
desejarem atrair o público fumante. Mas a proibição absoluta de Serra
tem uma finalidade distinta: usar o poder de repressão para dissuadir
os fumantes de fumar.
Já existem leis que proíbem a venda de
bebidas alcoólicas para menores. O veto absoluto imposto por Serra
atinge especificamente os direitos dos adultos nas festas juninas. Como
Serra, Costin invoca o pretexto de proteger as crianças para ocultar a
sua vontade de educar os educadores. O governador e a secretária
imaginam-se missionários da virtude. Deviam abrir igrejas e disputar a
conquista de almas num mercado competitivo, mas preferem fazer sua
pregação com a persuasiva ajuda da polícia.
Há um impulso
higienizador atrás dos atos normativos das duas autoridades. Segundo
Serra, adultos que fumam e bebem socialmente não podem reivindicar seus
próprios direitos, pois são mensageiros do mal. Se o governador
pretende despoluir os corpos, a secretária almeja limpar as mentes,
despojando-as de imagens impuras. A natureza territorial das normas que
patrocinam tem um significado: eles traçam um círculo de giz em torno
de espaços geográficos libertados do vício.
A busca do “homem
novo”, o indivíduo virtuoso que encarna as qualidades de uma nação
renascida, é um traço crucial dos totalitarismos do século 20. O “homem
novo” de Benito Mussolini, um guerreiro infatigável sempre em uniforme
militar, tinha como inimigo primordial não o judeu ou o estrangeiro,
mas o espectro envolvente da degeneração física e mental. Mens sana in
corpore sano - o princípio fundador da educação física e também do
eugenismo foi invocado pelos mais diversos regimes totalitários em
campanhas de reforma dos hábitos e comportamentos individuais. Serra
não impôs exercícios físicos compulsórios antes do trabalho e Costin
não mandou imprimir um livro oficial com imagens “adequadas”. Os
atropelos às liberdades que promovem são insignificantes diante dos
crimes monstruosos já cometidos em nome da virtude. Mas estão
impregnados pelo mesmo conceito fulcral, que subordina a liberdade das
pessoas a um projeto de eugenia coletiva.
O debate sobre a lei
antitabagista é esclarecedor. Inicialmente, os defensores da interdição
absoluta alegaram a proteção dos direitos dos não-fumantes, mas para
sustentar a proibição de fumódromos confinados convocaram os argumentos
que desvendam seu verdadeiro programa. O cigarro deve ser proibido por
oferecer um mau exemplo. Os fumantes devem ser socialmente
estigmatizados. O tabagismo deve ser coibido legalmente, pois as
doenças que provoca geram custos para o sistema público de saúde.
Friedrich Schallmayer, o fundador do movimento de higiene racial
alemão, explicou em 1903 que “os insanos constituem uma enorme carga
para o Estado”. Ele queria dizer que a “eficiência” da nação era
reduzida pela existência daqueles doentes. O arcabouço ideológica da
lei de Serra pode ser expresso como uma paráfrase do dístico de
Schallmayer.
Serra e Costin talvez não ambicionem de fato criar
o “homem novo” exemplar. Imagino que sejam movidos apenas por um
cálculo político oportunista, amparado em sondagens de opinião pública.
Mas isso não altera a mensagem contida nos seus atos. Distraídos, estão
formulando uma tese sobre o Estado e o indivíduo.
(O Estado de SP - 09/07/2009)
http://www.imil.org.br/artigos/pastor-das-almas/