Call me By Your Name
A remessa perfeita que esse filme faz em mim...
Parece que todo mundo elabora a mesma resenha sobre cinema, hoje em dia, antes de mijar pela manhã. Não queria mais escrever assim.
Vou fazer diferente. Vou falar da remessa perfeita que esse filme faz em mim...
Minha família é italiana, então o filme me dá a Itália nas suas mais variadas formas. 1) O apreço pela boa mesa, o apreço pela discussão política à mesa, gostar de cozinhar, gostar de receber, a desfeita cultural que é você não se sentar à mesa para jantar - como o personagem americano em certo momento faz. 2) A cidade de Crema, na Lombardia, captada pelo fotógrafo indiano Sayombhu Mukdeeprom ( que disse muito acertadamente que a luz do Equador é uma merda pois não tem nuances, mas a da Itália é maravilhosa, "seca". Reparem na luminosidade dos jardins da casa, como a sombra é mais preta, como a grama é mais verde. É a sensualidade também da natureza! E isso o tempo todo se reflete no filme: O peixe recém-pescado abre as guelras, desesperado. Uma mosca pousa no ombro do protagonista, que a aceita, e o diretor deixa, deixa, eu queria frisar- deixa- não manda o contra-regra espantá-la) 3) A sensualidade natural das pessoas. É tão bom ser latino, né? Não ter aquele atroz medo do corpo como os americanos têm. Assisto aos vídeos dos youtubers do USA e eles a comentar o uso escandaloso dos "shorts". Os personagens usam shorts, no calor, vejam vocês! E os homens ficam sem camisa! Vejam vocês! Que coisa! 4) Os italianos amam futebol? Sim. Mas também amam voley ("pallavolo")...parece bobo, é um detalhe, mas eu amo ver o cinema agir como um detetive da cultura. 5) A riqueza na Itália visa ao conforto e não à ostentação-Kardashian. O design de produção desse filme é absurdo de maravilhoso. Captou a riqueza intelectual dos personagens. A casa da locação tem rachaduras, a pintura está descascando em alguns pontos, mas os livros estão por todo canto. São velhos, tem orelhas, foram "usados", a dizer, foram lidos...Os móveis não são de design da Armani, são de madeira, são de ferro, ficam envelhecendo e enferrujando no jardim. A piscina não tem borda infinita, a piscina é um tanque de tijolos medievais, sabe? Que locação! Que achado! As pessoas falam: "o filme é bonito", mas não sabem explicar por que é bonito. É porque se passou dias e dias procurando um lugar assim. Uma das tarefas menos "visíveis" do cinema é o trabalho duro de se achar as locações. Não é fácil.
Eu sempre fui um admirador dos filmes do James Ivory. A elegância de tudo, quase um esnobismo, na verdade (Vamos contar um segredinho entre parêntesis, que é como o convém: Tudo bem ser um pouco esnobe na vida! As outras pessoas, por incrível que pareça, gostam.). O andamento calmo. As coisas mais desimportantes ganham 5 minutos de atenção. Que coisa maravilhosa que o Ivory nos ensina: que o colateral é importantíssimo! O 'plot' dos filmes dele é apresentado quase como uma "chateação"...É a vida que importa! Enfim, como cinéfilo, é prazeroso reconhecer o tanto de "A Room with a view" nós temos aqui. Não só um banho de Itália , mas o sempre artístico banho no lago. O banho de lago entre homens, vale dizer! Tanto naquele filme, como neste. Banho no lago, seja na pintura, seja no cinema, seja na literatura: uma forma aristocrática de apresentação da nudez! Naquele filme, os amantes vão para as montanhas fazer um piquenique; neste também. Amantes precisam se isolar... Eu fiquei catando esses paralelos...O novo filme que me era apresentado confrontando-se com o velho filme que existia dentro de algum escaninho empoeirado da minha mente (De dentro dela, estabeleci um outro paralelo entre a cena do trem e a cena do trem de "Summertime", de 1955, do David Lean, com a Katharine Hepburn fazendo ...uma solteirona americana apaixonada em Veneza. Foda!). James Ivory ganhará sua aguardada estatueta, pela adaptação do roteiro, tornando-se o mais velho a receber um Oscar. A remessa perfeita.
A importância do primeiro amor. Como negar? Eu duvido que exista uma pessoa no mundo que não pense constantemente no seu primeiro amor. Não pode ser apenas eu que tenha esse problema mental! Não pode ser eu apenas o único louco! E não sou! Tanto que o escritor egípcio André Aciman (Nunca li nada dele, mas vi a peça "Variações Enigmáticas", com o saudoso Paulo Autran) escreveu sobre isso. Porque o primeiro amor é diferente de todos! Inaugura o corpo; inaugura o conhecimento do ciúme ( no filme, representado na cena da festa, com um close espetacular, que, é concomitantemente, uma das mais belas imagens de alguém fumando cigarro que eu já vi!); inaugura aquela vontade incontrolável de querer estar perto de outro ser humano o tempo todo ( no filme, representado na brilhante cena de Timothée quase ajoelhado, alquebrado, na porta de casa, enquanto toca a lindíssima canção do Sufjan Stevens); inaugura a vontade maluca de MORAR dentro das roupas de outra pessoa (no filme, a ardente cena da bermuda), como se vestir as roupas da outra pessoa pudesse ser um abraço contínuo (ecos de "Brokeback Mountain"? Sim, o abraço da camisa!). Roupas que o Figurino inteligentemente escolheu em tons pastéis, claros, a brincar com listras verticais para o Hammer, e horizontais para o Chalamet (A menina Marzia também usa listras. E a mãe! O que Freud diria disso? Só as listras dariam uma tese)! E ainda me matou de inveja com a camisa do Talking Heads.O primeiro amor merece um filme como este. E o primeiro amor merecia sobretudo o extraordinário monólogo do personagem do Michael Stuhlbarg! Que texto! Que coisa mais linda! Seria merecidíssima a indicação. O primeiro amor causa inveja. O Sérgio de 2017 inveja até hoje o Sérgio do ano de 2000. Nunca mais poderei sentir aquilo novamente. Daquela maneira pura e intensa. É a remessa perfeita que eu nunca mais terei. "Is it a video? Is it a video?".
Mas, convenhamos, se tem um aspecto que é decisivo no filme é a não mencionada palavra "bissexualidade". É a remessa mais forte do filme em mim. A perfeita remessa. Semana passada, peguei um cara e uma menina. Meus amigos - no geral, roqueiros barbudos héteros - ainda estão tentando se acostumar a ver isso. E tão sempre me perguntando: "Mas qual você gosta mais?". A partir de agora eu posso responder a eles, pagando de culto e citar Heráclito: "Por mudar, é que permaneço o mesmo, galera. Foi dito num filme aí". No Filme também, os dois personagens gostam do corpo feminino e gostam do corpo masculino. Chalamet foi perfeito nisso, até com uma fruta ele demonstrou a força do prazer, numa cena ANTOLÓGICA. Percebo o Mito do Amor Romântico na inúmeras resenhas vendendo o filme como "história de amor entre dois homens". Sim, tem amor na sua faceta "homossexual". Mas pra mim o tesão bateu foi de ver a bissexualidade atuando! O personagem descobrindo que gosta de uma coisa e gosta de outra. Tem tesão pelas duas. As pessoas, querendo posar de libertárias, têm enxergado o filme assim: " Que lindo! Salve o amor! Salve o amor!" É dizer: O amor autoriza você a gostar seja de quem for. Como se o sentimento de amor "legitimasse". Ora, não precisa de amor! Que papo careta! "Call me By Your Name", para mim, não é "história de amor entre dois homens", é mais amplo, é uma "HISTÓRIA DO PRAZER" ! Todo ser humano está naturalmente legitimado, pela natureza, a ter relações sexuais com quem quiser! É por isso que a família, intelectualizada o bastante, orgulhosamente discreta quanto à religião!, não se incomoda de ver um dos seus representantes pegar, no mesmo dia, ora uma vizinha, ora uma visita, e nem pergunta se está ou não apaixonado, ou coisas do gênero. Não há essa pesquisa romântica. Os pais querem que o filho se descubra. Nada é forçado ("Nada foi escavado, e sim trazido à superfície"). Querem que o filho tenha liberdade ( talvez ele dê um gritão sem sentido diante de uma cachoeira, só para o TAO ouvir!). Como decorrência da liberdade, aqueles pais inclusive não veem problema em o filho transar na própria casa. A sociedade careta brasileira inventou o "motel" por que não suportava admitir o sexo passado dentro de casa! Na Europa, na França que eu conheço bem, não existe motel! Os filhos transam na casa dos pais, ora! Qual o problema?
O texto já está colossal, extrapolou o confidencial, eu vou parando por aqui...Indicaria o filme a tudo: Fotografia, Trilha, as duas canções originais ( executadas em dois momentos brilhantes: a cena do ônibus e o final de encher os olhos), Montagem, Roteiro Adaptado, Ator Coajduvante ( Stuhlbarg!, pela precisão técnica, pelo speech; e o Hammer, em uma atuação "flamboyant", de um jeito como "flutuante"); Direção ( bastaria a brilhante cena do sonho); Filme; Figurino, Direção de arte; tudo que pudesse. Tudo é meritório. Mas se eu pudesse apenas escolher uma categoria, uma só, teria de ser forçosamente ATOR!
Timothée Chalamet, um arraso! Uma atuação sublime! Extraordinária! O modo como ele se ajeitava no sofá, desculpe, mas nem o Daniel Day-Lewis faria melhor. Por outro lado, é maravilhoso ver um ator heterossexual acertar em maneirismos tão delicados que um cara fluído tem. Coisas de mão, certos olhares; gestos pequenos mesmos...O filme só poderia terminar com 4 minutos do rosto dele, onde se vê saudade, fossa e... um sentimento que não tem nome, mas todo mundo já sentiu: "orgulho da dor". Que alguém um dia invente uma palavra - deve ter em alemão - para esse sentimento.
Foi uma remessa perfeita. Vi na tela o italiano que eu sou. O esnobe que eu sou. O jovem apaixonado que eu fui. E a cara de prazer que eu demonstro, seja com um homem, seja com uma mulher.
A remessa perfeita.