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Forum Cinema em Cena

2007: Uma Quinzena Com Kubrick


ltrhpsm
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E o festival sobre Kubrick está terminando por aqui' date=' mas está prestes a começar na TV. O canal TCM vai fazer uma homenagem ao diretor e exibirá durante o mês vários de seus filmes, além de um documentário sobre ele. Segue aqui o horário e a data, retirados do site "Omelete":

05/04, 23h35 - Stanley Kubrick: Imagens de Uma Vida
22h - Dr. Fantástico
06/04, 02h - Glória Feita de Sangue
12/04, 22h - 2001: Uma Odisséia no Espaço
13/04, 00h25 - O Iluminado
19/04, 22h - Lolita
20/04, 00h35 - Laranja Mecânica
27/04, 00h30 - Barry Lyndon.

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É engano meu ou está acontecendo uma coincidência bastante feliz entre os nossos festivais e a programaçaõ das TV's?? No final do nosso Festival Hitchcock a Rede Globo resolveu também passar no final de semana dosi filems do Hitch...01

Pois é. Acho que o fórum é uma boa divulgação de filmes para a audiência dos canais. 06
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Finalmente o momento que esperávamos' date=' Jack Torrance entra em curto, enlouquece, torna-se a grande ameaça no Overlook. E é aqui também que a maior interpretação da história da 7ª arte entra em choque com uma aberração, uma das coisas mais risíveis já vistas no cinema: Shelley Duvall. Seria compreensível, e até honroso, que a atriz que vive Wendy tivesse sumido perante Jack Nicholson. No entanto, ela se destaca, transformando por várias vezes a pretensa OP do horror num trash hilariante. E o exagero da atriz, brecha fácil para tentar fazer colar uma interpretação absolutamente fora de tom, não importa o que digam, foi involuntário. Algo atestado pela famosa história de Kubrick obrigando-a a repetir a cena da escada por mais de 120 vezes. E ele deveria tê-la atirado daquela escada. Confessem aí, pois sei que não fui o único: vocês queriam ter visto Jack fatiando a Wendy. Queriam suas almas lavadas no sangue dela. [/quote']

 

Aí vc escorrega caro Foras... Se fosse qualquer outro filme' date=' dirigido por qualquer outro diretor, suas colocações teriam fundamento. Entretanto é Kubrick gerindo a bagaça e no que me concerne, a atuação trash da Shelley tem uma razão ÓBVIA: o expectador não tem um personagem em quem se agarrar. Uma criança não tem condições de se defender de um psicopata; o único que possui sobriedade ali morre antes da hora; a mulher é uma estabanada; quem resta? O psicopata?

 

Olhe para a atuação da Shelley como uma tentativa (bem sucedida) de Kubrick de nos isolar do envolvimento com quaisquer personagens da mesma forma com que ele isola seus personagens naquele ambiente inóspito. Antes estávamos curtindo a jornada com Jack... Quando ele enlouquece procuramos ávidamente alguém que o substitua para continuarmos acompanhando. Quem resta? Um menino que delira com suas alucinações, uma mulher aparvalhada e um cozinheiro que chega tarde demais. O expectador está sozinho, sem amparo e para mim, não há nada mais assustador do que isso.

 

Procure em qualquer outro filme de terror e vc verá que 95% deles vc tem um personagem que é a salvação do dia (o padre em O Exorcista; as mocinhas dos infinitos Sexta-Feira 13; Laurie nos Halloween; e por aí vai). O Iluminado não tem isso.

 

Ressalte-se que, pelo que sei, a Wendy do livro é uma espécie de Tenente Ripley do universo Kingniano, uma mulher forte que aguenta o tranco e ainda chuta bundas. Seria péssimo colocar isso num filme de terror dirigido por Kubrick.

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Legal, acredito na sua versão. Particularmete, me apego ao psicopata. Só acho que esta tentativa teria sido mais bem-sucedida, ao menos pra mim, caso Jack a tivesse matado. Acontece que isto não torna a atuação da Shelley Duvall menos risível.

 

Fica fácil perceber também o porquê de acabarmos (acredito) torcendo por Jack Torrance. Ele é sarcástico' date=' carismático, acaba se divertindo com a busca pela cabeça da esposa. "Little pigs, little pigs, let me in!". Muitos já devem saber, mas não custa citar aqui: a eterna frase "Here’s Johnny!" (uma referência a Johnny Cash) não constava no roteiro, foi improvisada no calor do momento por Nicholson. E que momento! [/quote']

 

Sorry' date=' não torço por ninguém nesse filme. Não consigo... Essa é uma das razões que faz dele um filme tão bom.

 

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Isto é uma encruzilhada poderosa nas nossas formas de ver o filme. Você se sente sozinho, isolado pelas montanhas rochosos e exposto à perturbação mental dos grandes salões do Overlook. No meu caso, Jack rouba o filme para si, e é por ele que torço, nele que me apego. Eu não me sinto sozinho no Overlook, eu me sinto parte psicopata, parte assassino! Mas não tenho certeza se Kubrick contava com algo tão absurdo concebido por Nicholson, capaz de fazer o público (ou, ok, parte dele) ser conquistado pelo lado negro da história. Se ele tivesse se aproveitado disto, e construído a vitória de Jack que, nesta hipótese, assassinaria sua família, poderíamos novamente ter nossos fundamentos morais abalados, assim como em Laranja Mecânica e Dogville (do Von Trier). Em suma, não sei se o que senti com O Iluminado correspondia à idéia do diretor, que acredito corresponder ao modo como você vê a obra.

 

 

 
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Legal' date=' acredito na sua versão. Particularmete, me apego ao psicopata. Só acho que esta tentativa teria sido mais bem-sucedida, ao menos pra mim, caso Jack a tivesse matado. Acontece que isto não torna a atuação da Shelley Duvall menos risível.
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A atuação dela É risível... a diferença é que é algo proposital, para fazer vc ficar com raiva dela e perceber que não tem por quem torcer...

 

Isto é uma encruzilhada poderosa nas nossas formas de ver o filme. Você se sente sozinho' date=' isolado pelas montanhas rochosos e exposto à perturbação mental dos grandes salões do Overlook. No meu caso, Jack rouba o filme para si, e é por ele que torço, nele que me apego. Eu não me sinto sozinho no Overlook, eu me sinto parte psicopata, parte assassino! Mas não tenho certeza se Kubrick contava com algo tão absurdo concebido por Nicholson, capaz de fazer o público (ou, ok, parte dele) ser conquistado pelo lado negro da história. Se ele tivesse se aproveitado disto, e construído a vitória de Jack que, nesta hipótese, assassinaria sua família, poderíamos novamente ter nossos fundamentos morais abalados, assim como em Laranja Mecânica e Dogville (do Von Trier). Em suma, não sei se o que senti com O Iluminado correspondia à idéia do diretor, que acredito corresponder ao modo como você vê a obra.
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Ahhhhhhhh, mas aí seria sim uma OP das OPs... Entretanto, de certa forma, acho que Kubrick sentia que não podia fugir muito da obra literária... O pouco que fez o pessoal já malhou... imagina se ele muda completamente o eixo da história e coloca um Jack vencedor?
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Legal' date=' acredito na sua versão. Particularmete, me apego ao psicopata. Só acho que esta tentativa teria sido mais bem-sucedida, ao menos pra mim, caso Jack a tivesse matado. Acontece que isto não torna a atuação da Shelley Duvall menos risível.
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1 - A atuação dela É risível... a diferença é que é algo proposital, para fazer vc ficar com raiva dela e perceber que não tem por quem torcer...

 

Isto é uma encruzilhada poderosa nas nossas formas de ver o filme. Você se sente sozinho' date=' isolado pelas montanhas rochosos e exposto à perturbação mental dos grandes salões do Overlook. No meu caso, Jack rouba o filme para si, e é por ele que torço, nele que me apego. Eu não me sinto sozinho no Overlook, eu me sinto parte psicopata, parte assassino! Mas não tenho certeza se Kubrick contava com algo tão absurdo concebido por Nicholson, capaz de fazer o público (ou, ok, parte dele) ser conquistado pelo lado negro da história. Se ele tivesse se aproveitado disto, e construído a vitória de Jack que, nesta hipótese, assassinaria sua família, poderíamos novamente ter nossos fundamentos morais abalados, assim como em Laranja Mecânica e Dogville (do Von Trier). Em suma, não sei se o que senti com O Iluminado correspondia à idéia do diretor, que acredito corresponder ao modo como você vê a obra.
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2 - Ahhhhhhhh, mas aí seria sim uma OP das OPs... Entretanto, de certa forma, acho que Kubrick sentia que não podia fugir muito da obra literária... O pouco que fez o pessoal já malhou... imagina se ele muda completamente o eixo da história e coloca um Jack vencedor?

 

1 - Aí é que tá. TALVEZ, Kubrick tenha percebido a fragilidade da veia artística da Shelley e largado de mão, especialmente depois da tal cena repetida mais de 100 vezes. Acredito que ela não teria capacidade alguma para fugir do que fez em cena. Acho que a coisa chegou a tal ponto que o Kubrick se encheu e disse "vai minha filha, faz o que você quiser..."

 

2 - É, estou imaginando a cara do Stephen King...06
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A meu pedido, os participantes enviaram-me suas impressões sobre o Festival e suas respectivas participações. Aos poucos, colocarei neste mesmo post.

The Fox:

Fiquei muito feliz em participar deste Festival. Primeiro porque Kubrick é meu diretor favorito e segundo porque é a minha primeira participação em um festival desse tipo aqui no Fórum. O primeiro Kubrick que eu vi foi Spartacus, recomendado pelo meu pai e que gostei bastante. Mas na época eu nem sabia quem era o diretor. Algum tempo depois, quando o cinema já não era um simples entretenimento para mim, tive a oportunidade de assistir a Laranja Mecânica. Eu conhecia o filme por nome, pois desde pequeno via a capa na locadora e ela sempre me intrigava. Aquele ser (eu não sabia se era homem ou mulher por causa dos cílios) com um sorriso malicioso, segurando uma faca e com um olho no pulso (não sei porque, mas eu achava que o olho ficava girando em torno do personagem) me davam arrepios. Assistir a este filme foi um momento único na minha pequena vida cinematográfica. Eu estava maravilhado, embasbacado, sei lá. Nunca nenhum filme tinha me marcado tanto. Hoje ele é meu filme preferido. Interessei-me pelo trabalho do Kubrick e procurei os outros. Já vi 9 dele e todos excelente. São diferentes dos outros.... não é somente som e imagem; é arte. Infelizmente, Kubrick já se foi, mas ele nos deixou suas incríveis obras que irão fascinar as pessoas do mundo inteiro para sempre. Só cabe a nós aproveitar.

 

Forasteiro:

É por coisas como esta que este fórum é o espaço de cinema mais privilegiado que existe. Aplausos de pé ao Itt, o cara mais promissor que eu já conheci, pela idéia e pela garra com a qual reuniu os usuários e fez esta merecida homenagem a um dos maiores nomes do cinema funcionar. E quando digo que aqui estão reunidos os melhores textos sobre o assunto da internet, hein? Não houve nenhuma crítica que deixasse a desejar, sinceramente, porque se eu tivesse achado que sim falaria, inclusive para ser justo com os demais. Tudo esteve sublime. Vocês são as pessoas mais inteligentes que eu conheço, e não imaginam a honra que é pra mim entrar neste fórum e aprender com vocês todos os dias. São os maiores professores que eu já tive.

 

silva:

Há pouco mais de um ano tivemos um período estacionário aqui no fórum. A idéia do Enxak em transformar uma pessoa em um cinéfilo em pouco mais de 7 semanas deu certo, não só porquê conseguimos isso (taí o Forasta que não nos deixa mentir), mas também porquê foi o estopim necessário para que tivéssemos a situação que temos hoje, com o sub-fórum “Cineclube em Cena” a todo vapor, com vários Festivais rolando  (e com a incrível coincidência da TV – aberta ou fechada – coincidir os seus filmes com eles, resultando numa inconsiente “homenagem” por parte deles, hehehe). No caso desse Festival em especial, foi mais do que uma honra participar. Espero que outras pessoas se mirem no exemplo do Sopa (uma das pessoas mais dedicadas por aqui no fórum) e, de alguma forma, mantenham o nível altíssimo de discussões e ensinamentos que se adquire por aqui. O Forasta disse em sua declaração que cada vez mais aprende com o pessoal por aqui; acho que todos nós temos essa sensação ao acessar esse fórum, nem que seja por alguns minutos. Enfim, parabéns a todos que participaram, especialmente ao grande idealizador, Sopa. E que venham mais Festivais desse calibre!!!

 

Jack Ryan:

Criar um festival para homenagear Kubrick nada mais é do que fazer justiça para com esse monstro sagrado da sétima arte. Foi uma honra poder participar com minha modesta resenha. Alias, o festival me deu a chance de colocar em palavras meus pensamentos com relação ao filme do Kubrick para com o qual eu tinha cometido mais injustiça. Foi uma oportunidade de crescimento pessoal e de re-descobrimento de um filmaço. E que não pare por aqui, pois os festivais organizados no Cineclube contribuem para o aprendizado de todos. Para terminar, parabéns ao ltrhpsm pelo ótimo trabalho na organização do festival.

 

E, se vocês pensam que acabou por aí, aguardem mais um pouco. Agora, eu quero ver lenha na fogueira! Quanto ao Festival do Kubrick no TCM, eu nem acreditei quando vi no jornal... Deste jeito, daqui a pouco as grades de programação dos canais estarão atentos única e exclusivamente para o nosso Fórum. Viva!
ltrhpsm2007-04-11 21:22:27
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Mais algumas serão postadas. Começando:

 

Alexei:

Stanley Kubrick foi um dos diretores de cinema que melhor combinaram os fatores aparentemente divergentes da autoralidade e da comunicação com seu público. Kubrick tinha sua visão particularmente pessimista da humanidade e do nosso futuro, mas isso nunca o encerrou numa redoma construída por suas próprias reflexões nem o desanimou quanto ao desempenho do seu ofício. Ao contrário, foi um cineasta cujas idéias e sentimentos eram transmitidos da forma mais aberta possível, mesmo que por meio de simbologias complexas. E isso tornava o conteúdo de seus filmes ainda mais atraente. Estética e filosofias instigantes se combinavam de maneira maravilhosa em seus trabalhos. O festival, organizado pelo Ltrhpsm com muita dedicação, foi um verdadeiro achado. Trouxe resenhas de grande qualidade, a menção a filmes mais obscuros do diretor, anúncios oficiais criativos e muito esmero na condução das discussões. O ltrhpsm e o fórum estão de parabéns!
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  • 3 weeks later...
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O Iluminado' date=' por Forasteiro:

The Shining (1980). Com: Jack Nicholson, Shelley Duvall, Danny Lloyd, Scatman Crothers, Joe Turkel, Barry Nelson, Philip Stone e Lisa & Louine Burns. Roteiro de: Stanley Kubrick & Diane Johnson, baseado no livro e Stephen King.

 

invernolq4.jpg

 

Quando Jack Nicholson filmou O Iluminado, já estava com 5 indicações ao Oscar nas costas e um deles na estante. Já conquistara um inabalável respeito da classe e do público. Já havia, definitivamente, escalado e fincado sua marca no Everest da carreira e da história do cinema, lugar de onde talvez nunca mais tenha saído. Quem analisar sua trajetória e afirmar, hoje, que se trata do maior ator que a 7ª arte já viu, não será de forma alguma reprimido ou contestado. Quem ouvir tal alegação, mesmo não concordando, mesmo nutrindo admiração superior por outros ídolos, sabe que a linha que separa Nicholson do tal título é transparente.
 
Stanley Kubrick, por sua vez, vinha de alguns dos trabalhos mais inspirados em sua pequena mas gigante filmografia. Entrara na história pela porta da frente e sem pedir licença, e o mais importante, muito antes de morrer. Assim como Nicholson, quem disser que o nome em questão pertence ao melhor diretor de cinema que já existiu, será ouvido tranqüilamente.
 
No entanto, ao que parece, nada é marcado no tempo sem ter sido banhado em uma viscosa solução de ironia. A maior interpretação de todos os tempos sequer foi lembrada pelo Oscar, enquanto Kubrick era contemplado com uma indicação à Framboesa de Ouro, provocada, principalmente, pelos irados fãs de Stephen King. Deste modo, Kubrick ganhava de presente tanto a reprovação dos leitores quanto do próprio romancista, reconhecido já na época como um mestre do horror. O Iluminado era conduzido ao fracasso imediato por uma expectativa imprecisa e inatingível que se montou através dos três grandes nomes envolvidos e do potencial do material utilizado. Mal sabia o mundo do erro que estava cometendo. Na época, talvez apenas Nicholson e o próprio Kubrick tenham compreendido que, na verdade, ninguém ali estava adaptando um romance de Stephen King, mas inventando uma das obras mais tensas e perturbadoras (e agora a diferença) da história do cinema.
 
Jack Torrance, um escritor bloqueado e aparentemente fracassado, acompanhado pela mulher e seu filho, tem sob sua responsabilidade o Overlook Hotel ao longo de todo o inverno. O lugar é um monstro de madeira e concreto incrustado no tronco das montanhas rochosas que, fora de temporada, permanece lacrado e absolutamente isolado pela neve durante longos e solitários cinco meses.
Kubrick deixa esta sensação de "ninguém ouvirá seus gritos" bem clara desde a belíssima cena inicial, quando somos carregados em um vôo panorâmico que escolta o modesto automóvel de Jack Torrance, parecendo escorregar e abrir caminho virgem até o Overlook. À primeira vista, a impressão que nos é passada é que tanto o hotel quanto o próprio Jack são inofensivos. O primeiro está lotado, aconchegante, exala um clima de civilização que se dissiparia nos vácuos abertos com a queda do inverno. O segundo é simplesmente a pessoa mais simpática da terra, fisga a confiança do administrador quase que instantaneamente. Houve inclusive quem dissesse que Nicholson fora a escolha errada para o papel, pois teria "cara de louco" desde o começo. O que vemos aqui, desde o começo, é um homem que conquista todos a sua volta, alguém digno de responsabilidade e que, principalmente, não deixa de demonstrar o quanto ama sua família.

 

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O Iluminado pode ser dividido em três partes, mesmo que suas proporções acabem diferentes. Basicamente, 1 – Não há vilão. 2 – O hotel é o vilão. 3 – Jack é o vilão. Este contraste que verte entre a primeira e as outras duas partes do filme, aliás, pode ser considerado um dos seus pontos altos. Acredito que o objetivo aqui era ilustrar uma metamorfose. Entretanto, sou obrigado à ingrata tarefa de fazer algumas ressalvas num filme de ninguém menos que ELE. O grande "erro" que serve de base às sucessivas falhas em O Iluminado se deve à aparente pressa do diretor. Não creio que o melhor modo de promover a transformação de Jack Torrance, e do próprio clima ameno que surge com a chegada ao hotel, seja jogar logo de cara alguns traços de suspense para o espectador. Aqui, Kubrick nos mostra uma faceta do que nunca foi: um cineasta fácil, preocupado em nos dar respostas e caminhos convenientes para que aceitemos os próximos fatos mais facilmente e sem questionamentos. Quando Danny conversa com seu "dedo", Tony, fica claro que algo grave está para acontecer, e percebemos ali que o garoto sofre interferências paranormais ao prever o telefonema do pai. Não consigo enxergar propósito algum no monólogo de Danny em frente ao espelho, ou a primeira visão das gêmeas já no hotel, que não seja estender um cartaz no lobby do Overlook anunciando que o filme em questão se trata de um suspense, que é para esperarmos calmos e sentados em nossos lugares porque algo com certeza vai acontecer. É como se Kubrick quisesse nos manter na ponta do sofá desde o início, quando deveríamos, a julgar pelas aparências propostas no hotel e pelo próprio Jack, irmos nos aproximando da tela lentamente, transformando-nos em espectadores de suspense conforme o suspense se aproximasse daquela família no Overlook. Mas do modo como é realizado, ao invés de participarmos da metamorfose junto com o filme, apenas a assistimos passivamente.

 

"Às 5 da tarde vai parecer que ninguém nunca esteve aqui". Nada poderia expressar melhor a sensação que temos através de Jack, Wendy e Danny, quando o mundo deixa as montanhas rochosas para trás, que esta frase do gerente do hotel. Chegamos à segunda parte de O Iluminado (rápido assim mesmo), quando o hotel é o grande responsável por toda a tensão absorvida pelo espectador. Não sei se era necessário dizer, mas provavelmente ninguém saberia usar os largos salões e corredores cumpridos do Overlook contra os personagens, tão bem quanto Kubrick. Basta lembrar do circuito traçado por Danny entre curvas fechadas, salas, um corredor e outro... Algo parecia prestes a saltar na frente do garoto, e o som, sim, o som é maravilhoso. O ruído das rodas de plástico em atrito com o piso e os carpetes do hotel teria passado como mera conseqüência daquela cena, um coadjuvante inútil, não fosse, claro, a mão precisa do diretor sobre a edição de áudio. O simples passeio de Danny torna-se tétrico e digno de olhos ardendo, vermelhos, atentos, distraídos ao fato de que já não piscam há algum tempo, apenas seguindo a steady cam que rasteja discreta atrás daquele frágil triciclo. A esta altura, já completamente imerso na brilhante atmosfera de suspense do filme, tente se lembrar da primeira vez que você viu O Iluminado. Tente resgatar aquela mesma sensação, de quando Danny vira em mais um corredor e lá estão. Elas... Eu não contei exatamente quantas curvas o garoto faz, mas mesmo hoje, depois de ter visto a mesma cena várias e repetidas vezes, o clima arrepiante pela simples espera da aparição certa daquelas duas garotinhas permanece eficiente. Ainda faz com que eu olhe pra trás e cheque os cantos obscuros da casa. Tudo ali é iminente, tudo aponta para um ataque, uma revolta do hotel. Como se não bastasse os ter engolido, agora Jack e sua família são digeridos nas entranhas daqueles salões vastos e gradativamente claustrofóbicos, como se o concreto se contraísse e esmagasse aquelas pessoas, quebrando como palitos um a um dos seus suportes emocionais e psicológicos.

 

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E é aqui que Jack Torrance começa a ser afetado. Em primeiro lugar, pela frustração e incapacidade de levar seu projeto adiante. Posteriormente, pelos "fantasmas" e eventos "sobrenaturais" do Overlook. Quando Wendy e seu filho Danny entram no labirinto, Kubrick utiliza-se de um recurso visual não apenas bonito, mas que explora ao máximo o potencial da cena e a traduz numa metáfora que funciona maravilhosamente bem. Com a ajuda, outra vez, da steady cam, somos acompanhados pelos becos estreitos do labirinto onde temos novamente a sensação de que a qualquer momento iremos nos deparar com o horror. O que, de certa forma, não deixa de acontecer... Numa das salas do hotel, Jack observa uma maquete do labirinto. O verdadeiro agora é mostrado em uma vista aérea, de um helicóptero, onde Danny e Wendy caminham à deriva até encontrarem o centro do lugar. Ali começa a se manifestar um desejo (talvez) retido de Jack, um utópico domínio total sobre sua mulher e seu filho, perdidos numa situação em que ele controla. Curioso também como em O Iluminado os dois grandes astros da obra brilham alternadamente e em proporções dignas de um respeito muito bem dosado. Depois de um mês no hotel, fica visível a fragilidade da paz no lugar quando Jack Nicholson/Torrance surge, em uma das melhores e mais assustadoras imagens do filme, olhando fixo de cima para baixo pela janela. E ele não pisca. Daquele momento em diante, fica impossível imaginar outro ator além do Nicholson no papel. Ele nasceu para Jack Torrance. Ou o contrário.


Aquele homem simpático, aquele chefe de família amoroso, já está em transição. E um ponto-chave deste processo acontece quando Danny vai buscar um brinquedo no quarto e encontra o pai, sentado na cama. Cena antológica, brilhante, absurda, intransferível às limitações do papel. Fica clara desde já a influência do hotel (ou dos "fantasmas") sobre Jack, principalmente quando este repete aquela incômoda frase das garotinhas.

Porém, apenas pulamos da segunda para a terceira parte do filme com o pesadelo de Jack. E acho até que vou poupá-los da redundância e nem citar mais a interpretação inenarrável do cara. A partir de agora, toda vez que aparecer o nome dele vocês, por favor, associem. Daqui em diante, Jack toma para si um motivo para odiar e reprovar o comportamento de Wendy, sentindo-se injustiçado pela acusação da mulher e, posteriormente, por seu suposto objetivo em destruir todas as suas possibilidades de finalmente subir na vida. Wendy passa de companheira à grande responsável pelo fracasso profissional do marido. É aqui também que Jack passa a ter contato, bem freqüente aliás, com os "fantasmas" do Overlook.

 

Minha principal implicância com o filme é que, quando penso nele concebido a partir deste ponto, enxergo uma obra-prima. Stephen King ficou alucinado com Stanley Kubrick por causa das inúmeras modificações (eu diria cortes) na sua obra literária. Eu não li o livro (fato que quase fez com que eu não escrevesse este texto), mas está bem claro pra mim que Kubrick pegou o pano de fundo de O Iluminado e simplesmente tomou outro rumo com o andamento do projeto. Segundo King, o cineasta transformou sua OP do horror num drama doméstico. Está errado, infelizmente errado. Caso Kubrick tivesse assumido esta faceta em totalidade, caso tivesse ignorado os traços sobrenaturais do livro, os poucos elementos que ainda restavam dele, O Iluminado teria sido o que ensaiou ser: um filme sobre a degradação psicológica promovida em um lugar onde as pequenas frustrações e desentendimentos entre o casal Torrance é amplificado, colocado sob uma lente de aumento, explodindo em mil pedaços, revelando as frágeis estruturas e conceitos de um homem sobre sua vida e suas prioridades distorcidas.

 

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Imagine alguém que ligue a TV e pegue o filme a partir do momento em que Jack começa ver fantasmas. Esta pessoa obviamente terá uma única impressão: Jack Torrance enlouqueceu através da companhia gradativamente irritante de sua esposa e a assim procedente solidão emocional e intelectual que estava sofrendo. Vistas sob esta premissa, as cenas em questão são especialmente perturbadoras e sutis. Tanto o diálogo entre Jack e Lloyd, como com seu "mentor" Grady, no banheiro vermelho. A conta é simples: os fantasmas dentro da cabeça de Jack, funcionam. Fora, não. Conseqüência da admirável opção e boa intenção do diretor ao reduzir (pra mim, ampliar) o horror sobrenatural de King a um horror doméstico de Kubrick. Infelizmente, como já dito, alguns vestígios da linha condutora na obra literária não foram apagados quando passados para a grande tela. Eu me submeto à escravidão eterna para quem descobrir qual a relevância de Danny à trama de Kubrick para que esta fosse batizada com um título em sua referência. O garoto vê fantasmas e prevê o futuro. Hm... pra quê?! Sobre o dedo, então, eu nem falo nada.

 

Ainda assim, ninguém torna-se tão inútil à trama do filme quanto o cozinheiro Halloram. Ele entra para explicar ao espectador os poderes de Danny (novamente, o atípico caminho fácil buscado por Kubrick), para criar todo um clima sobre o quarto 237 (onde temos uma cena de suspense eficiente, mas inútil) e para morrer (o que não ocorre no livro, onde ele é peça fundamental, responsável pelo final feliz de Wendy e Danny). Halloram é sujeira, uma gosma qualquer que restou da transposição da obra de King para as telas. Teria função caso Kubrick tivesse sido fiel ao livro, mas transformou-se em um estorvo ao rumo inverso e mais interessante que ele toma nas mãos do cineasta.

 

De qualquer forma, uma pausa nos problemas de Stanley Kubrick para saborearmos os melhores momentos do filme, protagonizados pelo outro gênio. Finalmente o momento que esperávamos, Jack Torrance entra em curto, enlouquece, torna-se a grande ameaça no Overlook. E é aqui também que a maior interpretação da história da 7ª arte entra em choque com uma aberração, uma das coisas mais risíveis já vistas no cinema: Shelley Duvall. Seria compreensível, e até honroso, que a atriz que vive Wendy tivesse sumido perante Jack Nicholson. No entanto, ela se destaca, transformando por várias vezes a pretensa OP do horror num trash hilariante. E o exagero da atriz, brecha fácil para tentar fazer colar uma interpretação absolutamente fora de tom, não importa o que digam, foi involuntário. Algo atestado pela famosa história de Kubrick obrigando-a a repetir a cena da escada por mais de 120 vezes. E ele deveria tê-la atirado daquela escada. Confessem aí, pois sei que não fui o único: vocês queriam ter visto Jack fatiando a Wendy. Queriam suas almas lavadas no sangue dela.

 

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A cena em que ela descobre que seu marido escreveu a mesma frase durante todo o tempo em que estiveram no hotel teria sido uma pérola rara, não fossem seus olhos esbugalhados, sua respiração frenética, e a nítida impressão que tive de que ela estava parindo um rinoceronte. Felizmente, Jack Nicholson entra em cena, e quando ele surge, tudo parece voltar a funcionar. Aliás, aplausos incontidos para a dupla de gênios, que produzem aqui mais uma cena histórica. Jack Torrance percorre o grande salão principal e sobe as escadarias pressionando Wendy, e nós vamos com ele. Tudo é perfeito, até mesmo a própria Shelley Duvall, que tudo que faz é chorar e balançar um taco de basebol, fica de longe parecida com algo que mereceria estar no filme, e participando daquele momento instável, inquietante, perturbador, genial. Copiaria o texto inteiro se pudesse, mas preciso citar um diálogo em especial. Algo que vai me fazer esperar e sempre querer rever O Iluminado. "Wendy, querida, luz da minha vida, eu não vou te machucar. Você não me deixa terminar a frase, eu não vou te machucar. Só vou esmagar os seus miolos. Esmagar até o fim".


A cena que virou capa do filme está prestes a acontecer. A simples visão de Jack, manco, carregando aquele machado pelos corredores do hotel, já é algo de congelar a espinha. E Kubrick, um cirurgião preciso, opera os momentos finais de O Iluminado de modo clássico, irretocável. Ele traduz a fúria de Jack para a tela, algo aparentemente impossível, ao acompanhar com movimentos rápidos cada machadada desferida contra as duas portas, a do quarto e a do banheiro. É algo hipnotizante, e de qualquer forma, não se esperaria nada diferente de um lingüista visual tão habilidoso como Kubrick.

 

Fica fácil perceber também o porquê de acabarmos (acredito) torcendo por Jack Torrance. Ele é sarcástico, carismático, acaba se divertindo com a busca pela cabeça da esposa. "Little pigs, little pigs, let me in!". Muitos já devem saber, mas não custa citar aqui: a eterna frase "Here’s Johnny!" (uma referência a Johnny Cash) não constava no roteiro, foi improvisada no calor do momento por Nicholson. E que momento! Escolhido, em uma pesquisa realizada pela emissora inglesa Chanel 4, como o mais assustador da história do cinema. E também não falo mais nada. Pare entre este parágrafo e o outro, vá lá contemplar Jack Torrance arrebentando a porta do banheiro, e volte aqui.

 

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Depois de termos o gostinho de ver Jack matando alguém (Halloram, que afinal só está ali pra isso), entre takes gargalhantes da sua mulher correndo, esvoaçante, com aquela faca na mão, podemos nos embriagar de medo e tensão em mais uma cena antológica: a perseguição no labirinto. E é impressionante a quantidade de cenas fortes que recheiam O Iluminado, tornando-o, apesar de seus problemas, um dos filmes mais marcantes e reassistíveis que repousam empoeirados nas prateleiras de fundo das locadoras. Talvez até por isso ele veio a ser reerguido do tombo inicial apenas anos mais tarde. É um clássico, ganhou brilho com o tempo, provocou nas pessoas um desejo estranho de ser visto novamente, porque tem aquela cena, sim, aquela do banheiro, e aquela do labirinto, do rio de sangue... O Iluminado ganhou força o suficiente para se desprender da sombra do livro de King que tanto o perseguiu.

 

Não sei se vocês notaram, mas apesar de estarmos num festival chamado Uma Quinzena Com Kubrick, e apesar de este ser o nome que consta na cadeira do diretor, fiz questão de começar a resenha com Jack Nicholson. Não quero de modo algum fazer pouco do Stan, até porque este é considerado inclusive por seus fãs mais ardorosos como um filme menor se comparado aos representantes da década de 70. O que ocorre aqui é que, apesar de todo brilhantismo com o qual o cineasta conduz sua atmosfera de suspense, e o cuidado que teve para transformar seu filme em um horror psicótico e inquietante que age de dentro para fora, Nicholson tem a ousadia de pegá-lo para si. Repetindo, considero esta a maior interpretação da história do cinema (da história que eu conheço, se o termo incomoda). Jack é deus em cena, ele faz o quer e como quer, é onipotente, é surreal, é inacreditável. Mesmo com a presença de Kubrick na direção, caso O Iluminado não tivesse contado com ele, não teria funcionado. Cada frame com sua presença tem potencial para ser impresso e emoldurado. Ele é o motivo pelo qual quebrei o método e fiz questão de descrever cada uma das principais cenas em que ele cresce e torna-se maior que tudo, deixando coadjuvantes todos os elementos que interagem com ele, aí inclusa a direção sensacional de Kubrick.

 

Não quero, entretanto, que o cineasta pareça menor porque o coloco abaixo de Nicholson em O Iluminado. Quem ainda não tinha se dado conta de quem era o homem por trás das câmeras, que me perdoe, mas merece sofrer com a cena final. Pra quem o esteve procurando, este é Kubrick, definitivamente, tatuando sua marca habitual no filme e em seus perplexos espectadores. Tudo ia muito bem na sua cabeça, tudo estava montadinho e perfeitamente compreensível, não fossem aqueles segundos finais, que irão lhe perseguir, lhe tirar o sono, lhe pregar no sofá o forçando a assistir pensativo a ascensão dos créditos. Não rotulo O Iluminado como OP, acredito que o filme tenha pego o rumo certo mas perdeu algumas coisas pelo caminho, mas ainda assim, tanto por Nicholson como por Kubrick, trata-se aqui de uma obra imortal. Aquela foto datada na última cena é artifício próprio do diretor, que como homem à frente do seu tempo, soube preservar suas obras como bons vinhos, fazendo com que renasça a cada discussão, a cada debate travado sobre o que afinal havia acontecido naquelas duas horas anteriores. Que cada um crie sua teoria, o escurecer da tela é deixado gentilmente escancarado para isso. Na minha humilde opinião, Torrance, como diz Grady, sempre esteve ali. Ele vive um ciclo, e amaldiçoado, acaba retornando ao hotel para ser enterrado nele. Jack Torrance é um resumo do consagrado estilo de Stanley Kubrick, é um círculo fechado, um labirinto belíssimo, fascinante e repleto de acessos secretos, pelo qual, em toda obra com o subtítulo do diretor, somos convidados a passear e a nos perder, for ever... and ever... and ever...
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Forasta, o que você quer que eu diga disso?1706

 

Não tenho nada a acrescentar. Tu destrinchou o filme, o que é dificilímo de ser fazer uma análise, resenha ou crítica (que seja), já que é muito filme muito aberto, que aceita várias interpretações.

 

Arrasou como sempre, né, fio.10

 

Sim, o Nicholson é foda. E sim, O Iluminado é uma obra imortal.
Jailcante2007-05-01 00:57:12
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  • 3 months later...
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Doutor Fantástico' date=' por silva:

Doctor Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb (1964). Com: Peter Sellers, George C. Scott, Sterling Hayden, Keenan Wynn, Slim Pickens, Pether Bull, Tracy Red e James Earl Jones. Roteiro de: Stanley Kubrick, Terry Southern & Peter George (livro original).

 

hitchcockbo1.jpg

 

O ano: 1945. O acontecimento: O Fim da Segunda Grande Guerra. Após seis anos de guerra, bombardeios em várias localidades (Pearl Harbor e Hiroshima – Nagasaki a frente), milhões de soldados e civis mortos, a “paz” reina novamente no mundo. O grande eixo – Alemanha e Japão á frente – é derrotado e, a partir daí, Estados Unidos e União Soviética se consolidam como principais forças mundiais – a primeira como representante do “sistema” capitalista, enquanto que a segunda representa o eixo socialista. Durante várias décadas, esses países, através de investimentos tecnológicos e de fins militares, tentam demonstrar a superioridade do seu sistema (e, por conseqüência, do seu país) em relação ao outro. A essa corrida pela liderança mundial e, de acordo com as duas superpotências, “manter a paz” se denominou “Guerra Fria”.


O temor de uma guerra nuclear apocalíptica consolidou-se no fim dos anos 50 com a bomba de hidrogênio e a demonstração de sua força em testes a céu aberto. Perto da bomba H, os bombardeios de Hiroshima e Nagasaki foram terríveis em si, mas leves como prenúncios. Preocupado e interessado, Stanley Kubrick lê nessa época dezenas de livros sobre o tema e chega a conversar com estrategistas militares ingleses durante as filmagens de Lolita. Como resultado dessas pesquisas, Kubrick compra os direitos do romance Red Alert, de Peter George e, junto com o próprio Peter George e Terry Southern, começa a trabalhar em um roteiro. O resultado: um dos filmes mais contundentes feitos sobre o assunto, no qual Stanley Kubrick nos presenteia com uma pérola de humor negro que critica acidamente as guerras e a mediocridade dos homens por trás destas.

 

24356ht1.jpg

 

O filme começa com um general enlouquecido, Jack D. Ripper (Sterling Hayden), ordenando um ataque nuclear não autorizado à União Soviética. Ele tem certeza de que os comunistas estão envenenando a água potável do mundo inteiro, um boato muito comum nos EUA, durante os anos 1950. O seu imediato, Capitão Mandrake (Peter Sellers), tenta, em vão, impedir o fato. Enquanto isso, o General Turgidnson, um dos integrantes do Conselho de Guerra, é avisado do acontecido enquanto estava com a sua secretária, sendo convocado para a Sala de Guerra, onde o Presidente Muffly (Peter Sellers) o aguarda para maiores esclarecimentos, juntamente com outros integrantes do Conselho, entre eles o ex – cientista nazista Dr. Strangelove (Peter Sellers). A partir de então a história é alternada sempre em três cenários: a sala de guerra; a base militar onde o general Ripper está sitiado e o avião bombardeiro que carrega a temida bomba atômica, pilotado pelo texano Major T.J. “King” Kong (o veterano de westerns Slim Pickens). O que eles não sabem é que, caso eles bombardeiem a União Soviética, será acionada automaticamente um dispositivo de retaliação automático denominado de “A Máquina do Juízo Final” que cobrirá toda a Terra com uma nuvem radioativa durante 93 anos.


Ao ler essa sinopse, o leitor desavisado pode pensar que ocorreu um erro crasso de digitação, já que Sellers aparece interpretando três personagens diferentes. Mas não foi um erro: Kubrick, sabendo do potencial cômico do filme e, principalmente, desses personagens, fez questão de ter Peter Sellers interpretando – os, inclusive fazendo o filme nos estúdios Shepperton, em Londres, especificamente para que ele desse andamento ao seu processo de divórcio.

 

kubrickfmjvu4.jpg


A caracterização de Peter Sellers desses três personagens tão distintos é impressionante. Sellers é tão genial em suas atuações que quase não percebemos que esses três personagens são interpretados pela mesma pessoa. Por exemplo, quando está representando o presidente dos EUA, sua voz é calma, controlada, porém ele sempre se apresenta tenso. Como oficial da RAF ele muda a voz e tem sotaque inglês. É desastrado, porém disciplinado, como todo inglês. Entretanto é como Dr. Fantástico que Sellers se supera, falando com sotaque alemão e preso a uma cadeira de rodas, com uma de suas mãos fazendo a referência nazista a todo o tempo, fugindo do seu controle. Sua tripla atuação, representando papéis antagônicos, significou para a indústria cinematográfica uma inovação, afinal de contas, temos momentos em que dois de seus personagens dialogam entre si, configurando desta maneira uma novidade no cinema até então. Mérito para Kubrick e Sellers. Na realidade Peter faria inicialmente quatro papéis, interpretando também o piloto do avião bombardeiro Major T.J. “King” Kong.


Outro que devemos destacar pela sua atuação é o subestimado George C. Scott como o General Turgidson, que nutre verdadeiro ódio pelos comunistas. Em sua atuação, Scott oscila com precisão cirúrgica entre o nervosismo controlado (como quando informa a Muffley o que está acontecendo, no início da crise) e a raiva histérica (que começa quando o embaixador soviético é convidado a entrar na Sala de Guerra).

 

southvietnampop1972ls5.jpg


Outro fato digno de nota desse filme é a ironia que o permeia durante todo o tempo. A começar pelos nomes dos personagens: há um sarcasmo sutil por trás deles. O nome Jack B. Ripper remete a Jack, o Estrupador (Jack, The Ripper); o General Turgidnson recebe esse nome em virtude de sua libido; O representante soviético que adentra a sala de guerra, o Embaixador de Sadesky, é uma referência a Sade. A ironia também se faz presente nos diálogos, resultando em inúmeros momentos cômicos inspiradíssimos como, por exemplo, na cena em que o Presidente interrompe uma briga entre Turgidson e o embaixador de Sadesky, dizendo: 'Vocês não podem brigar aqui! Isto é a Sala de Guerra!'. Outros dois exemplos dignos de atenção envolvem as conversas entre o presidente dos EUA e o Premier Russo; além das cenas logo no início do filme envolvendo o General Ripper e o Capitão Mandrake, onde, no fundo da cena, podemos ver painéis com os dizeres “Peace is Our Profession” (Paz é a Nossa Profissão). Bastante irônico em se tratando de uma indústria que produz a Guerra. Sem falar da cena mais famosa do filme, que envolve a bomba atômica e o Major Kong, montado nela: nesta cena, temos a síntese dos soldados que seguem à risca as ordens que lhe são destinadas, sem que se façam concessões ou indagações.


Essa ironia está presente não só para criticar a guerra, mas também para criticar/ilustrar a libido masculina. Por exemplo, quando o General Turgidson é convocado as pressas para compor a mesa da Sala de Guerra, quem atende o telefonema é a sua secretária, com quem ele tem um caso, que por sua vez aparece apenas de calcinha e sutiã deitada na cama. Em paralelo, no avião bombardeiro, um local apertado e claustrofobórico um soldado folheia uma Playboy, em que a modelo da capa é justamente a secretária do general. Outra cena que ilustra isso é quando Dr. Fantástico propõe como uma das saídas para repovoar o planeta após a explosão da Máquina do Juízo Final a construção de um imenso bunker nas cavernas, onde a proporção de mulheres para homens seria de 10 para 1. Ao ouvir essa proposta, o General Turgidson, que antes olhava de forma desconfiada para o Cientista, rapidamente lança um olhar de extrema aprovação. Em outras cenas, ela é mais sutil, quando o General Ripper diz que 'nega sua essência às mulheres'.

 

invernong7.jpg


Temos ainda uma direção extremamente eficiente de Kubrick, que mostra ter o timing correto para as cenas envolvendo comédia (como nas conversas entre o presidente e o premier, onde ele intercala as reações do presidente e do General Turgidson), além de registrar com eficiência a imensidão da sala de Guerra, em contraste com o ambiente caustrofóbico do avião que carrega a bomba. Além disso, a sua direção demonstra também um didatismo bastante adequado quando são mostrado os procedimentos de controle e de lançamento da bomba, em que, uma vez dada a ordem pelo Major Kong, a câmera rapidamente foca o painel de controle, evidenciando o painel referente ao comando executado. Isso permite uma maior imersão do telespectador à cena, dando-o a oportunidade de se sentir dentro do avião.


O mais incrível disso tudo é que todas essas cenas funcionam tanto como crítica ferrenha às Guerras e, ainda por cima, são extremamente engraçadas dentro do seu contexto, resultando num filme cômico e, ao mesmo tempo, verdadeiramente complexo. Prova da genialidade do seu realizador, que mostra, mais uma vez, estar a frente do seu tempo, realizando um filme que mais de quarenta anos após o seu lançamento, ainda se mostra, em tempos de George Bush e sua “Guerra de Terror”, extremamente atual. A União Soviética não existe mais (assim como o Comunismo), mas a Guerra pela “Garantia da Paz” ainda continua, mostrando que, por mais que se façam alertas (e Kubrick fez o seu), a humanidade demonstra mais uma vez a característica de não aprender com os próprios erros.

 

hitchcocknr6.jpg

 

Divirtam-se com o novo prato do dia: Doutor Fantástico, a obra de humor mais ácido da carreira kubrickiana, valeu a ele indicações ao Oscar de melhor filme, diretor e roteiro adaptado; além de ser o filme de Kubrick com melhor média no IMDb. O silva contou-nos de maneira didática esta divertida sátira, que constitui o patrimônio de obras-primos de Stanley, sem exceder-se nas descrições e seguindo fiel a um estilo histórico bordado com curiosidades.

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Eu disse que leria o texto do Silva, só precisava de tempo.06 Está perfeito, extremamente bem dosado, objetivo, dedicando todo o espaço que cada elemento analisado precisava. Iniciando com a contextualização histórica, passando pela tradicional sinopse (muito, muito bem escrita), desempenho do Peter Sellers, uma reflexão sobre o caroço da coisa, o próprio Kubrick e, claro, o potencial que sua obra tem em relação aos problemas que aborda. Vi Dr. Fantástico há mais de um mês, na verdade, mas já estou querendo assistir de novo. É perfeito, e só por ter me apresentado o Peter Sellers (sério, não conhecia o cara) já teria valido. É uma comédia de outro nível, realmente, como só os filmes do Kubrick conseguem ser. Ah sim, top:

 

1 - Laranja Mecânica – OP<?:namespace prefix = o ns = "urn:schemas-microsoft-com:office:office" /><?:NAMESPACE PREFIX = O />

2 - O Iluminado – 8

3 - Dr. Fantástico - 10

4 - Barry Lindon – 10

5 - Nascido Para Matar – 8

6 - 2001 – 7

7 – De Olhos Bem Fechados - 7

 

 
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Ué, tá certa essa nota de O Iluminado, Foras?

 

Enfim, meu top atual (não gosto de listas, mas enfim, já é bom ir treinando pro Top CeC 06):

 

1) 2001: Uma Odisséia no Espaço - 10/10

2) Laranja Mecânica - 10/10

3) Dr. Fantástico - 10/10

4) Barry Lyndon - 10/10

5) De Olhos Bem Fechados - 9/10

6) Nascido para Matar - 9/10

7) O Iluminado - 9/10

8) Glória Feita de Sangue - 8/10

9) O Grande Golpe - 8/10

10) Spartacus - 8/10

11) A Morte Passou por Perto - 6/10

12) Lolita - 4/10
Noonan2007-10-16 19:26:14
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  • 3 weeks later...
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Acabei de ler a resenha do Full Metal Jacket muito boa.

Gostei muito do filme.

E pensar que o EUA continua fazendo a mesma coisa...

 

 

Top Kubrick:

 

A Clockwork Orange OP/10 - #6
Full Metal Jacket 9,2/10 - #29
2001: A Space Odyssey 9,1/10 - #39
Dr.Strangelove 9,1/10 - #40
The Shining 8,4/10 - #78
Paths of Glory 8,0/10 - #102
EdTheTrooper2007-08-27 13:15:02
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  • 2 months later...
  • Members

 

Acabei de ler a resenha do Full Metal Jacket muito boa.

Gostei muito do filme.

E pensar que o EUA continua fazendo a mesma coisa...

 

 

Top Kubrick:

 

A Clockwork Orange OP/10 - #6

Full Metal Jacket 9' date='2/10 - #29

2001: A Space Odyssey 9,1/10 - #39

Dr.Strangelove 9,1/10 - #40

The Shining 8,4/10 - #78

Paths of Glory 8,0/10 - #102
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Laranja mecanica OP e 2001 e the shining não ?! pelo amor deus, reveja esses 3 filmes.

 

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  • 4 months later...
  • 3 months later...

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